sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Fortaleza

Sinto às vezes, e tão agudamente que até preferiria não ter sentido, que a solidão é uma espécie de fortaleza. Não gosto de sentir desse modo, pois é a confirmação de que perdi a fé na humanidade. Mas é que precisar dos outros é tão dolorido que não quero precisar nunca (mais) de ninguém. Gostaria apenas de ser grandiosamente grata quando por acaso eu precisasse e por acaso me fosse ofertado aquilo de que eu tanto preciso.

Mas o comum é eu pedir e não ser me dado. Porque também, eu não peço com palavras, o que dificulta tudo para mim e para quem gostaria de me ajudar. Sou exigente demais. Peço uma compreensão que é difícil de ser dada. Como a criança que ainda não aprendeu a falar, quero ser compreendida. Mas, crescida que sou, não quero mais chorar. Porque se eu pedir com palavras e aquilo que eu preciso não me for dado, aí é que vou ficar triste. E já que sou só e tenho a consciência da solidão, que eu faça dela a minha fortaleza. Eu, forte e grande dentro de mim mesma. Com dores que não incomodam mais ninguém.

PS: não, isto não é triste. Pelo menos não deveria ser.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

equação

o amor é uma incógnita
quem o contrário diz
ainda não compreendeu
o valor de x

[e quem não diz nada
talvez compreenda tudo
porque o nada é infinito
mesmo que esteja mudo]

sábado, 27 de novembro de 2010

Sobre voar

Ele não é o mesmo. Ele nunca será o mesmo. Ele nunca foi o mesmo. No entanto sinto como se aquela pessoa tivesse um núcleo sólido e que aquilo que achei que conhecesse nela fosse de uma extrema estabilidade. Mas os mesmos eram meus olhos que olhavam estáticos aquilo que estava mudando. Como se eu estivesse em um carro em movimento, olhando da janela para o céu, e neste céu houvesse um avião também em movimento, dando a impressão de que o avião estivesse parado. Perdi de vista o avião quando me distraí. Olhei para o mesmo ponto e o avião não estava mais lá. Confiei demais na imutabilidade daquilo que tem asas e que sobrevoa a realidade. Quanta tolice. O que é imóvel pode ser imóvel diante de olhos apenas imóveis. A imobilidade vê a imobilidade. Vemos o que acreditamos ver. Mas o que é visto – isso muda. E muda num piscar de olhos. De repente o avião não está mais lá. Aviões voam, e voam rapidamente. E voam rapidamente para longe. Voam com um destino que é deles mas quem está de fora nunca saberá onde ele vai pousar. Nem mesmo o avião sabe. Dentro do avião mora um piloto que não fala a língua da máquina do avião. O piloto guia., o avião vai, mas só quem sabe “para onde” é mesmo o piloto. E o piloto é incomunicável
A mim, resta o aprendizado. Fiquei sabendo depois de não ter mais visto o avião, que ele pode desaparecer. E não só pode: desaparece, como é de seu direito e talvez até mesmo de seu dever. Olho novamente pela janela. Meus olhos não são mais imóveis, e se transformaram. Meus olhos são a janela. Sou feita de aço e voo no espaço, sem saber para onde vou. A imobilidade me abandona. Você. O chão. Para sempre eu me voo. Sou também um avião. E vou pousar sabe-se lá em que pistas, e sabe-se lá se vou pousar. Talvez meu destino seja cair. Há em mim um piloto que me guia. Desconheço a rota, mas não deixo de voar por entre nuvens, tempestades e raios de sol. Ir em frente é a única salvação, e arduamente vou. Para onde vou? Não sei. Ao seu encontro? Quem sabe? Se nos faltar ar, máscaras de oxigênio cairão dentro dos nossos corações. Eles, que precisam tanto respirar.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Sentir muda

Eu não aprendo mesmo. Continuo a tentar entender o que não é passível de ser entendido. Sentimento explicado é qualquer coisa, menos sentimento. Bem mais bonito sentir. Então é assim que deve ser? Sentir muda? Sentir muda não muda o sentimento. Sentir muda pra continuar sentindo, mesmo sem o seu consentimento.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

à la leminski

destruídos
venceremos

[Amor = x] | 1 | Carta nº1 a X

“Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões, é que se ama verdadeiramente.” - C.L.

X,

O amor é mais amor quando já deixou de ser amor para ser um mito. Ama-se como se acredita em deus. E não é preciso pensar em deus para acreditar nele. Então descubro que te amo mais quando não te amo. Quando tudo na minha vida passa e você não está presente, mas é onipresente, como deus. Mesmo que eu não saiba que a sua presença preenche meu coração inteiro. Volto a pensar em você e o amor vira uma prece. Deus não tem um corpo que eu possa atingir, assim como eu não posso beijar sua boca quando sinto vontade. E ainda assim posso sentir que você nunca vai me abandonar. Eu não preciso da sua mão para sentir que estamos de mãos dadas. Independente de deus a minha fé existe. Independente de sua presença, você está aqui. O amor é da mesma natureza que a fé. É por isso que é tão vulnerável. Humana que sou, creio, não creio, torno a crer. Amo, desamo, volto a amar. Mas quando descreio, o que desconheço em mim ainda crê, mesmo que eu não saiba. E mesmo que eu desame, o que desconheço em mim ainda ama, mesmo que eu não saiba. E quando eu digo que deus não existe é quando eu mais penso em deus. É a partir de deus que nego sua existência. E quando acho que não te amo eu te amo mesmo assim. Porque é a partir do meu amor que eu digo que não te amo. Nada melhor do que a negação para afirmar. A negação é uma presença vestida de ausência. Mas até mesmo quando não penso se te amo ou se não te amo, continuo te amando. Então também a ausência é amor. É no vazio oco do mundo que as coisas de repente nascem. O zero é sempre um ponto de partida. Um neutro ponto de partida. Deus é zero, assim como eu te amo é zero.
Escrevo como quem oferece o que tem de mais precioso. Fazendo de minhas palavras um terço sagrado que pudesse estar à sua mão caso você sentisse que precisa do visível para crer no invisível. Mas não me ofendo se por acaso você recusar minha oferenda, pois estou escrevendo como quem reza: agradecida por compreender que amar é uma dádiva que só eu posso dar a mim.
 


                                                                                                                                           

luta

grandes lábios
pequena gruta
um orgasmo
pasmo
labuta

pedido

que os carros não atropelem minhas ideias
que as buzinas não ensurdeçam minhas vontades
que os capitalistas não contagiem minhas necessidades
que as horas não controlem minhas ânsias
que os dias não me tragam cefaleias
que os salários valham menos que minha emoção
que o amor não enfrente mais distância
que pulem para o papel as palavras do meu coração

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

ocaso

não vou criar caso

nada acontece
por ocaso

no fim
o  sol se pôe
dentro de mim

e o fim
vira aula
vira luta
vira lua

e eu vira-lata
viro a noite
esperando o dia apontar
[erros e apertos]

então o sol renasce
sem revoltas
ilumina sins e nãos

e eu aprendo
a lição

a vida fica mais clara
depois de uma escuridão

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Do outro lado do nojo

O nojo me fascina e eu sempre desejei atravessá-lo: meu destino é atravessar o nojo e pegar a vida com as mãos. Exercitava, ainda bem criança, esse meu talento para com as coisas rejeitadas: ia pescar com o meu pai e ele me ensinou a botar a minhoca no anzol. Com muito gosto eu as cortava ao meio e as prendia com meus dedinhos finos. E depois as baratas de pesca, com suas perninhas de cócegas. E o pior de todos para mim: os bigurrilhos. Um tipo de verme branco e duro, cascudo, na verdade, que fazia um barulhinho grave quando enfincado no anzol. Assim: tluuc.
Mas fui corajosa e venci também este nojo. Assim, vencendo os pequenos nojos, eu sentia que avançava e não dependia, e que estaria depois preparada para o Grande Nojo da existência. Ajudava as primas com as iscas. O meu prazer nem era pescar: era ir além do nojo e me sentir, deste modo, mais madura. Ver o peixe aberto também era tarefa curiosa. Melhor que o ato de pescar: eu não tinha paciência para esperar, queria logo ir transformando nojo em coisa sagrada.
O nojo é a etapa que antecede a experiência. O nojo é sempre uma imaturidade. O nojo é um não estar preparado para pegar a vida nas mãos. Mas é perigoso não ter nojo. É um estado de loucura e solidão íntima. É olhar para a vida simplesmente, e não colocar as coisas em estado de repugnância. É misturar-se em meio às coisas nojentas e de repente ser uma delas: fazer parte. Ser o próprio nojo. Eu sou: nojo. Eu grito daqui de dentro, do mole e do pegajoso da nojeira que é: existir. Porque na realidade todo mundo é perecível e tem um corpo que apodrecerá e servirá de alimento para baratas e vermes. Somos a carne que o nojo come.
Venha, Grande Nojo. 
Passo por você, Grande Nojo. Passe por mim para que o nojo seja também experimentado por quem tem medo do nojo. Faz de mim, Grande Nojo, teu instrumento. Mas venha todo enorme, causando-me medo também. Ofereço meu corpo ao nojo e que ele se aloje como um vírus e que contamine a todos, não com o meu vírus do nojo, mas com o nojo-de-dentro que possui todo coração que bate. Sei que o Grande Nojo é traiçoeiro, usa terno, tem unhas limpas e roupas sempre passadas e cheirosas. É para o Grande Nojo que eu vou. Mas trago meus pequenos nojos para lutar contra você, Grande Nojo, e assim você será apenas mais um. E eu? Vencerei a mim mesma, a humanidade, ao mundo. Sem ao menos sair do lugar. Só por conhecido o seu outro lado.

sexta-feira, 30 de julho de 2010

leitura

sobre minha pele branca
seu espesso leite
expressa
nosso deleite

revelação

não sei o que quis dizer
com o que disse

não quis dizer nada
só disse

e de repente
a verdade
apareceu

trote

o mundo domesticado
domou o amor
que eu insisto em cavalgar

indignada
[rédeas em punho]
não digo nada
[mas suponho]

o cavalo sou eu

acidente

o cio do silêncio
                [seu]
fere
minha alma
ocidental

acidente
[o mais fatal]
:eu não ter nascido
[de repente]
oriental

anonimânsia

as palavras vomitaram
é áspera a espera

do seu silêncio deserto
jorram águas
:minha mitologia
acaba de molhar o papel

mas o teu nome secreto: nunca pronunciarei

monólogo

silêncio aos cacos
barulho de soco
na boca do estômago oco

sinto pelo que digo
mas teu umbigo
nunca será meu ouvido

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Profissão natural do brasileiro

Thomas fez curso de clown nos EUA. Mas só se tornou um profissional reconhecido quando naturalizou-se brasileiro.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

sentimento eletrônico



"que importa o sentido se tudo vibra?" alice ruiz

sob grandes e caros óculos
me enxergam olhos gigantes
que de minha figura esquecerão
logo que a próxima música entrar

também eu me esqueço
(ou talvez esquecer não seja o sentido que busco)
[ou talvez esquecer o sentido seja o que busco]
os barulhos brigam demais a minha volta

chicotes dançam no ar, acima de todos
(invisíveis e inverossímeis cordas)
os bonecos dançam irremediavelmente
também eu danço, em estado de poder

olhos trêmulos e opacos me delatam
e eu, pupila, me pergunto, dilatada:
pertenço? não pertenço? pertenço? não pertenço?

estamos surdos a tudo, exceto ao deus que toca
estamos incomunicáveis e nossos dentes batem
(continuo tendo, dentro de mim, o dentro-de-mim?)

em densa agitação meu coração descompassa
se rebela mas não se faz ouvir:
meu coração é o corpo todo
e agora tem um ritmo incomum:
dança a dança do deus inútil

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Quando uma árvore pensou

Estática. Nada retorna quando o que passou nunca foi. Ter sido não significa. O que poderia ter sido, ou o que era pra ser, foi jamais. Entenda o que digo: em todos esses anos que passaram, eu nunca de fato fui. A existência foi por mim. Você nunca teve medo de ter sido uma mentira? A cada dia nascemos, a cada noite morremos, mas o vento sopra em nós. Ser é um mistério que não ouso entender, mas compreendo. Compreendo agora, com minhas secas nervuras, já que ontem eu não era eu, e amanhã deixarei de ser o que sou, mesmo que aparentemente, sempre me seja. Que faço de mim quando mim não entende de ancestralidades? O ontem é meu ancestral antigo. O anteontem uma nuvem que se dissipou. Que faço do mim que estou agora sendo? Os pés duros, fincados, a cabeça verde a balançar, dando-me a grave ilusão de movimento. E ventre do fruto mais bendito vermelho. Deus me humilha com sua sádica intolerância. Tento me opor a deus, tolerando-me: fracasso. Nunca serei deus, eu que nem em deus posso crer. Nem Eva, nem a maçã macia. Eu sou a raiz de uma macieira secular que ignora a própria existência. Extática.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Adeus, Sophia.

Adeus, Sophia. Teu nome me enoja: enjoa, enjoy the end. Você foi traída por sua própria identidade. Teu nome é que te traiu. Você não é sua. Está na boca do povo: eles usam teu nome em vão. Você é Sophia de todo mundo. Você não tem mais nome. Você é: você. Como gritar ao mundo que este nome é teu, só teu, e de mais ninguém? Como não se machucar por ver seu nome sendo dito sem a intenção de te chamar? Por que não disseram Mariana, Alessandra, por que usaram um nome que era o teu? Agora chora, menina sem nome. Chora machucada. Porque a única coisa imutável e definida em você já não te resta mais. Sophia. Sentirá saudades do teu antigo nome? Deixando de ser Sophia, deixará de ser você? Não mais será Sophia. Não, quero corrigir-me: já não é mais Sophia. Não ter um nome seria mais seguro: assim ninguém roubaria de ti seu silencioso nome por não sabê-lo.

Mas alguém possui um nome? Alguém é possuído por um nome? Quem é que tem um nome na vida? O nome é um destino? Por que não pode mais ser Sophia? Porque dói o ciúme de ver teu próprio nome servindo de beijo entre eles. Já não posso dizer mais que isso, não me é permitido dizer mais. Menina sem nome, que buscava antes o dentro de si porque já tinha algo definido ao qual se apoiar, pois que era em Sophia que se apoiava, ah, menina sem nome, agora não basta mais buscar o de dentro, terá que buscar o de fora, a casca, a tua conexão com o mundo: um nome. Sem pai, sem mãe, sem nome, sem nada. Com que forma se moverá dentro do Tempo e do Espaço? Põe o relógio no pulso do peito, desnomeada, desnorteada. Que talvez o infinito já tenha alcançado o neutro da inexpressividade. E já não caiba mais em você.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

A menina Sophia e a maçã

Mas era saborosa a maçã, suculenta, doce. E como se não bastasse, ela estava com a maldita fome das quatro da tarde. Como estavam todos ocupados demais com as próprias vidas- a mãe com as compras, o pai com o emprego e o irmão com o cursinho -, podia se entregar indiscretamente ao seu estado mais humano e secreto, distraída, viva, vendo sem ver.
Mais uma mordida, e mais outra cravando primeiro a casca, depois a poupa: a maçã ia perdendo sua forma definida e vermelha para, aos poucos, se tornar cada vez menos uma maçã e cada vez mais naquela maçã. E era boa, e era doce, e era cheia de água e sabor aquela maçã. E era mais dela do que qualquer outra coisa.
A tudo a menina olhava com extremo descompromisso: podia ver os ponteiros do relógio na parede, sem pensar sobre as horas. Podia ver a palavra “estupro” no jornal, sem que imagens corressem a galope em sua mente de menina. Nada, nada, sem pensar. Assim: uma desconexão plena com o que era de fora, e uma intensa conexão com o que era dentro. E, se realmente tivesse olhado para o relógio, de pouco importava e de nada adiantava: ela nunca se lembraria daquela cena, só se lembraria do sabor da maçã. Nunca havia se dado conta, e talvez nunca se daria, de que essa liberdade tão rara era a sua maneira mais essencial de existir. Comendo a maçã, cumpria o máximo de sua existência. A nada resistia, nem era preciso resistir: a mente vazia de pensamentos, significados insignificantes, apenas o sabor da leve e saborosa maçã.
Se iria um dia pintar as unhas de vermelho e atravessar noites e dias dançando em êxtase, era o que menos importava. E ela nunca imaginaria tal possibilidade. O que a prendia, sem que pudesse se dar conta disso, era seu estar no mundo, às quatro horas de uma tarde larga, sentindo o gosto e a textura da maçã. Que faria depois que a maçã acabasse? Não sabia. O que sabia? Que era boa a maçã. Mas não, não era com o pensamento que sabia, tal qual como fora e seria toda sua vida de mulher: dada a saber das coisas por outros meios. Se um dia pintaria seus cabelos de amarelo-ouro e os faria balançar para lá e para cá com seu andar sedoso pelas ruas em plena madrugada, de nada adiantava saber. Ainda era a virgem no meio de uma tarde flutuante. E, como não seria capaz de se dar conta de sua habitual e em breve perdida entrega, pouco importava se sentiria saudades do que havia passado sem saber exatamente saudades de quê – e isso por não ter consciência dessa liberdade com que intimamente comia a maçã.
De que adiantaria saber sobre o peso que a esperava no futuro, desde a noite em que fora concebida sem amor pelos pais? – mais uma mulher diante do mundo louco. Saber, não sabia. Mas pressentia em raros momentos de aguda lucidez que não seria dócil a travessia. E isto era um susto, um surto, um soluço repentino e passageiro no meio de seus dias iguais. E, como ninguém tem o costume guardar na memória um soluço passageiro, também a menina se esquecia dele. Porque havia uma fresca manhã de sono em sua vida, e havia uma fresca maçã deliciosa em suas delicadas mãos. Por que então lembrar-se do soluço irrefletido, se podia exercer a virgindade de uma menina que ainda não se enxergava como a medida de tudo o que existe? Era a virgem, a mais virgem entre as virgens, e tão virgem quanto qualquer outro ser humano, como qualquer dama da noite: sempre virgens do tempo, sendo estupradas a cada momento pelo furo do futuro, o furo que suga pra dentro cada ser, e que e que o joga para dentro do furo seguinte: o furo do segundo, um estupro, e mais outro, e mais outro. Virgem como qualquer ser humano diante do tempo, sendo violentado a cada próximo e a cada distante segundo.
Assim como a maçã jamais imaginaria ser arrancada do pé e ser violentada pela boca salivante de uma menina virgem, a menina virgem jamais adivinharia que seria arrancada de sua inocência pela vida incerta. E ali estavam as duas: a maçã sendo corrompida pela boca da pureza. E a boca da pureza sendo deglutida pela roda dentada da vida.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Primeiro dia

As calcinhas já secaram no varal.  Desliguei o som porque quero – preciso – muito do meu silêncio. Sentei e fiquei ali, parada. O brigadeiro que você deixou pela metade ainda está na mesa da sala. A latinha de suco de pêssego que você tomou enquanto jantávamos nossas porcarias ainda está na cozinha. Tive dificuldade em jogá-la fora, achei um pouco doentia essa dificuldade: a quase incapacidade de jogar uma latinha vazia no lixo, só porque ali tinha saliva sua. E seus últimos momentos comigo estavam registrados nela, ora, ela havia presenciado tudo. Espantada, com o coração aos saltos, peguei a latinha com as minhas mãos tão brancas e vazias, ainda com o esmalte verde da semana passada, o coração na boca, abri a tampa da lixeira e adeus latinha.
E repeti para mim mesma: que faço agora, e agora? Virei rapidamente as costas e saí da cozinha para não permanecer por muito tempo presa àquele pensamento, poderia ter ficado por horas na cozinha, ter sentado junto à mesa com a latinha de suco de pêssego na mão, chorando, procurando pela gente, te procurando nela. Mas bravamente me salvei, ainda que desamparada.  Fui para o quarto, sentei na cadeira e senti uma leveza, perigosa leveza que o estado de choque sempre me proporciona – será que só eu sou assim na vida?: quando alguém morre ou vai embora, primeiro vem o estado de choque e com ele uma negação da realidade, travestida de aceitação da realidade – não que essa leveza possa durar, e não que não possa durar também – quem sabe? – mas o fato é que naquele momento eu estava leve e isso me foi bom.
A J. chegou, conversamos. Depois chegou a B. Conversamos. Eu ainda naquele estado de choque, pensando: elas devem achar que sou fria, mas sei que isso é passageiro, que sou quente até demais, que dentro de uns dias estarei fervendo, fervendo, amanhã acordarei mal, não péssima ainda, mas o fato é que a realidade ainda não me chegou ao estômago, ainda está passando pela garganta, não, não engoli, quanto mais tê-la digerido. Não, não digeri, e quanto tempo levará até que essa droga comece a bater? Essa droga de vida que é uma vida sem você. Neste momento eu já estava entregue – e sozinha. A B. e a J. já estavam dormindo, e eu resolvi tirar o esmalte verde das minhas unhas, pintá-las de rosa flúor, não queria o verde que presenciou nós dois hoje me acompanhando durante a semana, eu tendo de olhá-las e pensar que você ainda estava um pouquinho ali. Pintei, ficaram bonitas, obrigada. E já eram duas horas da manhã, necessário dormir. Você não deu nenhum sinal, melhor assim, pior assim, melhor assim. Ai meu deus.
Amanhã você acorda cedo, então já deve estar dormindo, você não tem problemas com o sono, nem eu tenho. Mas será que você conseguiu dormir? Será que tá doendo aí em você como está doendo em mim?
Covarde, peguei um dos livros que você me ajudou a carregar de lá da biblioteca até em casa, o do Caio F., covarde, covarde, porque sabia que não conseguiria dormir se deitasse, embora com sono estivesse. Lerei aquele conto que eu estava tentando ler quando você reparou que eu não estava mesmo bem, porque eu tinha o livro nas mãos mas não olhava para ele. Li, e tinha uma frase assim “aos caminhos, eu entrego o nosso encontro”, eu sorri triste e mentalmente repeti: aos descaminhos estiveram entregues nossos desencontros, aos caminhos, entrego nosso reencontro, estamos desencontrados mas nos encontraremos, será?
Será que dessa vez nos desencontramos para sempre? Tenho medo dessa resposta, não quero te deixar para trás, é amor demais, é apego também, é querer-nos demais.
Enfim, estamos anoitecidas: eu e a solidão. Faço madrugada, mas já não sei que horas são. Sim, o Sol voltará, ele sempre volta. Mas previsão não há. Minha alma está enegrecida com a sombra da tua ausência na minha vida.

domingo, 6 de junho de 2010

Fora adentro, dentro afora

Coracéu
Lá fora tudo à toa.
Aqui dentro, passarinhos.
Só você não voa.

Uni-verso
Lá fora tudo acaba.
Aqui dentro me limito.
Só você infinito.


Aquário com Peixes
Lá fora tudo seco.
Aqui dentro aguarada .
Só você nada.

quinta-feira, 27 de maio de 2010

do contra

quero sempre
o que nunca está
no que está

se me dão o centro
quero a borda

se me oferecem o chão
escolho voar

vejo mais nitidamente
quando fecho os olhos

e faço laços
com as voltas que
o mundo dá

corporal

te amo com todos meus músculos
com meus glóbulos vermelhos
com minhas órbitas doloridas
e com as dúvidas que são pedras na minha cabeça
mas não no meu coração
te amo com o peito cheio
e com as mãos vazias
o que trago e te ofereço é meu amor
meu cansaço e minhas pernas
que apesar de tudo ainda desejam caminhar
te amo com todo meu tecido adiposo
com meus poucos cílios
e minha boca salivante
com os nervos te amo
com os tendões
as unhas, dentes e estômago
te amo com o enjoo da vida
sempre presente
com a náusea da existência
te amo e amo como respiro:
assim, sem esforço algum
te amo incerteza, silêncio e pintas
molecagens, riso inconfundível e pouca fala
te amo corpo inteiro
pêlos e tatuagem
nu te amo ainda mais
despido, dormindo, vulnerável
te amo olhos fechados
e boca aberta
e por amar assim
pouco calma, muito corpo,
alma toda
e não só por amar assim
mas por ter vivido
antes e depois e estar agora
te e me aprendendo
não sei como terminar um poema de amor
só sei fazer amor
com este meu corpo
que é pouco
e talvez não mereça o teu

terça-feira, 25 de maio de 2010

falácia


fato
seu falo
me cala

amorfo

dê forma
com cuidado, amor

amor demais
à forma


                         deforma

s@bedo(ria)

cyber m@is
pr@ ser
feliz?

pare

parecer
ao invés de ser
é padecer

o inferno são eus outros

arrumei Sartre
pra me coçar
concluí algo
que boto fé:

o inferno
são os outros

o que poucos sabem
é que são os outros
que a gente é

forma x conteúdo

forma
versos
conteúdo

a meta
do poeta
é conter
tudo

terça-feira, 18 de maio de 2010

Da liberdade incompreendida.

A - É disso que eu estou falando.
B - De quê?
A - De liberdade.
B - Ã?
A - LIBERDADE.
B - Mas, o quê?
A - Liberdade, porra, liberdade!
B - Puta que o pariu, do que é que você tá falando?
A - Eu não sei o que é que há de errado com a liberdade. Tudo o que eu queria era um pouco de liberdade, porque gosto das coisas mais espontâneas e naturais. Não me sinto bem coagindo, influenciando, forçando uma situação, manipulando as circunstâncias. Quando eu ofereço a você a sua própria liberdade, também é um pouco por egoísmo.
B - É, você é egoísta mesmo. Mas explique.
A - Porque é de meu interesse. É uma satisfação saber que foi a sua liberdade que te trouxe até mim neste momento, por exemplo. E não porque você acha que eu preciso de você ao meu lado agora. Esta sua liberdade ao lado da minha é que me satisfaz. Por que você tem asas e não quer voar? Quero te mostrar as suas asas. Asas não são insultos. São feitas para voar. Suas asas não me ferem. Quero que você seja livre, que voe. Tão alto que seja capaz de ver tudo, tudo de lá de cima. Não entende? Quero que você se tenha. Para que possamos não ter um ao outro, e sim a companhia um do outro.
B - E tudo o que eu queria era que você se importasse mais. Você não me compreende?
A - Mas será que você não enxerga que é essa a minha melhor maneira de me entregar a você? Eu não sei ser de outro jeito. Eu sou assim. Essa é minha maior oferenda. Não te peço nada. Pedir é amar?
B - Você não me ama.
A - Você não se ama.
B - Você é insensível.
A - Você é melodramática.
B - Eu te odeio!
A - E você ainda fala que sou eu quem não te ama. 

quinta-feira, 13 de maio de 2010

dúvida

dúvida
                    dedicado ao du 
toda dúvida
divide a vida
entre uma dádiva
e uma dívida

quarta-feira, 12 de maio de 2010

.

ponto final

se você me der
[...]
eu fico com
[:]
e te devolvo
[.]

                                                           [troca justa, não?]

terça-feira, 11 de maio de 2010

dai-me

                                                                           (ins)pirado em um papo
                                                                            no MSN com @josue_elias
você é dose
enche meu copo
e meu corpo
de metamorfoses

depois minha
in[consciência]
é que arca
com as
consequências

sozinha




segunda-feira, 10 de maio de 2010

Divagação de Sophia sobre "ser"

Uma vez que se fala ser, já não se está sendo. Está se deixando de ser para se pensar sobre o ser. Eu já fui. Eu já pensei sobre o meu estar sendo. Pensar se torna um vício, assim como ler. Tente olhar para uma palavra sem ler. É assim que tenho estado – estado, e não sido. Olho para mim e já não consigo deixar de pensar que: sou. Quero o caminho inverso. Quero despensar. Quero uma ignorância doce e lúcida. A simplicidade por opção. Ser, pensar sobre o ser, pensar ser e então, somente então, a coisa pura que é: tão somente ser. Atravessar o complexo para chegar ao núcleo que interessa. O núcleo neutro de: ser.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

não vou rimar amor com dor

pálida e sem cor
estou abatida
e sinto dor

mas que pena
essa rima é muito batida
pra terminar o poema

adeus a mim

Para A.P. um [novo] amigo querido, 
nome protegido até segunda ordem.

transpirar
para não pirar

correr
para não corar

implodir
para explodir

viver
às vezes
é deixar-se ir

se esconder
para fora
pelo menos por agora

esforço físico traz calma
sublima a alma
é a melhor escolha
antes de ir embora

terça-feira, 4 de maio de 2010

deficiência sentimental

sua alma é surda
não ouve a minha
vontade absurda muda
de te aprender

confunde tudo
e enxerga, cego
que o que eu quero
é te prender

logo eu que nem sequer possuo laços

segunda-feira, 3 de maio de 2010

quase indiferente

o homem que eu amei
e não me amou
já não me causa mais
ódio, carinho ou pena

ele não me foi
de todo inútil

afinal
no final
tudo vira poema

sábado, 1 de maio de 2010

desapetite

fazer social
é restaurante fino
buffet sem bufões
talheres certos
mesas sem cotovelo
assuntos sem pessoas
pessoas sem assunto

obrigada, garçom
esse prato não desce
esse gosto não engulo
fico com os restos
que sobraram de mim

embrulha pra viagem?

desassossego

viver gente
dói há anos
nos tutanos

viver me deixa
cego

ser carne
osso e tropeço
fere a alma
entorta
os dentes

viver me tira o
sos
s
[ego]

o que em mim te ama

minhas orelhas te amam minhas ideias minhas veias meu coração minhas artérias te amam meus seios meus receios minha indagação minhas carências te amam meus lábios minhas lábias minha confusão minhas loucuras te amam minha idade minha insanidade minha subversão minhas dúvidas te amam meus baixos meus relaxos minha discrição minhas palavras te amam meus dedos meus medos minha intuição minhas injúrias te amam minhas secas meus ciclos minha tentação minhas poesias te amam meus acasos meus ocasos minha menstruação minhas mulheres te amam minhas melhores minhas piores minha intersecção minhas falácias te amam meus silêncios meus ócios minha masturbação minhas moléstias te amam minhas rimas meus rumos minha ostentação minhas certezas te amam meus sins meus fins minha solidão minhas maldades te amam meus passos meus espaços minha escuridão minhas torturas te amam meus segredos meus sagrados minha ingratidão

sexta-feira, 23 de abril de 2010

margianal

margianal

pra quem fica à margem
desse prazer

                                voyeur

terça-feira, 20 de abril de 2010

versos comprimidos

para didoneante 

engulo com vontade
comprimidos sintéticos
feitos de loucuras
                                  sintáticas

sexta-feira, 16 de abril de 2010

pudor

o senhor é meu penhor
e nada me faltará

meio

não há meio
de ser
sempre inteiro?

sentença

ausência
minha partida
sua sentença

ébria

eu absinto
uma ponte
sobre o abismo
entre nós

o cio do ócio

o ócio
sozinho
é um saco
acompanhado
 é pau
no buraco

calcinha

minha calcinha sua
só com umolhadinha
sua

silêncio

sua língua
míngua
a minha

um caso de amor e de ódio

palavra I – amor

a palavra é o grito que representa uma coisa que é muda e que jamais pode ou poderá ser representada, a coisa: esse é o maior sofrimento do poeta: dar som àquilo que nunca deixará de ser silêncio. poeta é o que trabalha com a matéria do impossível. poeta é aquele que veste o que nunca deixará de estar nu. o poeta é a própria nudez em forma de carne. sua palavra é suor e soa alto. palavra é o tronco que ecoa oco, mas que esconde e mostra seu cerne.

todas as palavras já foram ditas.


palavra II – a ódio

todas as palavras - essas malditas – já foram inventadas e já estão ditas. quando nasci, não sabia falar. quando soube, não pude escolher a palavra chichume para designar uma coisa que é uma panela. não pude escolher a palavra crelho para designar uma coisa que é casa. não pude escolher a palavra zomburo para designar aquilo que conhecemos como loucura!

e tem gente que ainda acredita em liberdade. tolos.

faz meu gênero



a dor é crônica
por isso conto:
prefiro poema

autoria

minha assinatura
foi assassinada
silenciosamente
mas jaz em todos
os versos
                                 dispersos
em paz



quinta-feira, 15 de abril de 2010

Diálogo

- Conhece a Liberdade?
-Ah, sim, a filha da Ousadia com o Descaso?
- Não, a filha do Respeito e da Coragem. Essa daí que você falou até parece fisicamente com a Liberdade, mas o nome dela é Libertinagem. 

quarta-feira, 14 de abril de 2010

O grito de Sophia

Liberdade é uma palavra redonda, cheia, que quase explode na boca quando pronunciada em looping: li-ber-da-de-li-ber-da-de-li-ber-da-de-li-ber-da-de. É um grito alto que alivia quando não está mais preso na garganta. A liberdade sobe das vísceras com uma força descomunal, atropelando coração, atropelando o fôlego. Eu não preciso de pão. Alimento para o meu corpo é liberdade. Em looping, assim: ...-li-ber-da-de-...!

sexta-feira, 9 de abril de 2010

O poema

Nenhum poema
Merece respeito
Todos são trouxas
Feito nas coxas
Todos são leigos
 
Nenhum poema
Nasce direito
-Cortam a alma
Rasgam a calma
Mostram defeitos
 
Nenhum poema
Fala baixo
Grita pouco
Revela o intento
 
Mas quando o poema
Endoidece a face
Desfaz o disfarce
Insulta o certo
Alça vôo e se lança
 
Tudo de oculto
em mim
Se alcança

perfeição

o poema perfeito
acontece
não é feito

pegadas

me faça
perder
as estribeiras
me amassa
me encaixa
me deixa
sem eira
nem beira

me come
pelas beiradas
ou então some
sem deixar
pegadas

circus

meu nome
um endereço
na tua agenda
de homem

na minha
um embaraço
qualquer
um “quem sabe?”
de mulher

aparece fazendo
estardalhaço

some
me levando
um pedaço

tanto faz
cansei do meu nariz
de palhaço

linguagem

sinta-se à vontade
entre meu sexo
e minha sintaxe

contemplação


religião
contemplo
sem templo
nem instituição

quarta-feira, 7 de abril de 2010

descobertas


perplexa
até debaixo
das cobertas
você me
descobre
                 complexa

inventador


invento uma dor
para desbaratinar
a minha
crio e creio
assim nunca
estou sozinha

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Escrituras sangradas

Quando olhares para o céu, abóbada azul, lembra-te: és nuvem que passa e logo em breve tu te dissiparás. E ao apertares os olhos sentido a dor feminina de rasgar o ventre em vermelho, lembra-te que é dele que são feitas tuas estranhas entranhas de mulher. E se por acaso teu útero contrair, não permitas tu que teu grito mudo delate tua íntima dor. Já aprendeste o caminho do silêncio, segue por ele. Segue sangrando por este caminho solitário e seco. Teu coração ainda bate quente no silêncio seco e espesso do deserto. Para onde vais? Para onde fores. Para quem gritarás? Socorro, para a voz que mora na tua própria cabeça. E quem responderá? Necessário que saibas: ninguém. Tuas pernas são tuas últimas companhias e teus olhos, a única esperança. Para além do que tu não podes ver, existe o que tu ainda não enxergas. Anda. Atravessa o deserto que há em ti, o deserto de mar morto que sangra aí dentro. Atravessa com sede, fome e medo, nem ao menos a ilusão do oásis à tua frente. Anda, atravessa teu deserto íntimo e universal de mulher. Tu mesma te esperas do outro lado do deserto. Altiva e outra.

quinta-feira, 18 de março de 2010


Não é o mundo que me espanta. Sou eu mesma. As coisas que co-existem dentro de mim me assustam muito. São contraditórias, são demais de muitas. Eu sou essas coisas. Eu sou eus. Incontáveis. A identidade não dói em você? Porque a mim, dilacera. A unicidade de me ser me ofende.

quarta-feira, 17 de março de 2010

grito de mulher

dispenso sua massa
 ence
       fálica


fico com o meu
tão temido íntimo tímido
buraco negro

provação

nem aquilo que pintam
nem seu contorno
nem good night
nem bom giorno
meu o amor é o pão cru
que o diabo
ama / sou


e que nunca sairá
do forno

pensando baixo

divagar

devagar
e baixinho

tal é o
o caminho
da low cura

aviso

o amor é um
desavisado
e ai daquele
que o avisar

consumidora

teu corpo à vista
tua alma a prazo
é assim que te amo
se eu acabar no prejuízo
com quem eu reclamo?
nem prosa
nem poesia
a vida plausível
é inescrevível

quem diria?

é isso

sem compromissos
nem promessas
nosso amor
não tem essa
de pressa

terça-feira, 16 de março de 2010

A doença de Sophia.


Aprendeu que não existia tempo, e sim por enquanto. Não um aprendizado que se aprende ao ler belos e livres livros, mas aquela descoberta diária da inexistência de qualquer possível linearidade da vida. Ela ultrapassara o tempo. Além do mais, conseguia agora definir que estava doente, muito doente, o que antes era apenas uma impressão que sentia com todo o seu corpinho miúdo de mulher. Por que, afinal, tudo a invadia tanto? Por que, afinal, quase permitia avançar os limites? Quem a visse passar com seus passos de cor azul-comum pelas ruas do centro jamais imaginaria os passos que dava por dentro, seus tropeços, seus percalços. Se existisse o dom da clarividência, veriam nela a pessoa perturbada que sempre fora, mas como era contida, ela caminhava azul, como se nada gritasse. De certa forma, ela aprendera a manter a classe, e manter a classe significava jamais transparecer uma pessoa doente. Mas ela sabia que era doente, que estava doente. O assédio de tudo era enorme, e para aceitá-los todos, teria de ser não apenas uma pessoa, não apenas ela mesma, a pessoa que tinha um nome e nele se reconhecia para fins práticos, um ser eloquente e concentrado até o seu próprio núcleo, como costumava ser sem dificuldade até antes da primeira menstruação, mas teria de ter todas aquelas personalidades que a assediavam, oh deus, como assediavam!, ela teria de ser a  moça com grandes óculos e cigarro na boca, ao mesmo tempo que teria de ser uma mãe brincando com seu bebê gordo no colo, e a sarcástica mulher calada que criticava secretamente a tudo e a todos, também aquela mulher que gritava histericamente com o namorado, teria de ser a invejável dama do escritório, a dama respeitada, teria de ser uma mulher que ardentemente desejava beijos femininos, e também a menina que dançava à noite para viver com menos dor os dias. Mas bravamente Sophia rejeitava todas as personalidades, ficava no quase, no quero-mas-não-posso e deste fino limite não passava porque aí já seria aceitar a grande loucura que era a realidade – ou seriam as realidades? – interior. Sophia estava doente e a doença de que Sophia sofria não contava com pesquisas acadêmicas ou investimentos sérios. A doença de Sophia era a doença universal de seu século. O nome da doença de Sophia era O Mundo. Mas o que fazer, pois que se curar dO Mundo significaria necessariamente afirmar sua posição plurexistente na realidade e tornar-se não um ser de verdade, mas todos os seres possíveis sem perder a identidade? O que poderia fazer se sua própria cura ofenderia aos outros doentes e a própria doença?