terça-feira, 16 de março de 2010

A doença de Sophia.


Aprendeu que não existia tempo, e sim por enquanto. Não um aprendizado que se aprende ao ler belos e livres livros, mas aquela descoberta diária da inexistência de qualquer possível linearidade da vida. Ela ultrapassara o tempo. Além do mais, conseguia agora definir que estava doente, muito doente, o que antes era apenas uma impressão que sentia com todo o seu corpinho miúdo de mulher. Por que, afinal, tudo a invadia tanto? Por que, afinal, quase permitia avançar os limites? Quem a visse passar com seus passos de cor azul-comum pelas ruas do centro jamais imaginaria os passos que dava por dentro, seus tropeços, seus percalços. Se existisse o dom da clarividência, veriam nela a pessoa perturbada que sempre fora, mas como era contida, ela caminhava azul, como se nada gritasse. De certa forma, ela aprendera a manter a classe, e manter a classe significava jamais transparecer uma pessoa doente. Mas ela sabia que era doente, que estava doente. O assédio de tudo era enorme, e para aceitá-los todos, teria de ser não apenas uma pessoa, não apenas ela mesma, a pessoa que tinha um nome e nele se reconhecia para fins práticos, um ser eloquente e concentrado até o seu próprio núcleo, como costumava ser sem dificuldade até antes da primeira menstruação, mas teria de ter todas aquelas personalidades que a assediavam, oh deus, como assediavam!, ela teria de ser a  moça com grandes óculos e cigarro na boca, ao mesmo tempo que teria de ser uma mãe brincando com seu bebê gordo no colo, e a sarcástica mulher calada que criticava secretamente a tudo e a todos, também aquela mulher que gritava histericamente com o namorado, teria de ser a invejável dama do escritório, a dama respeitada, teria de ser uma mulher que ardentemente desejava beijos femininos, e também a menina que dançava à noite para viver com menos dor os dias. Mas bravamente Sophia rejeitava todas as personalidades, ficava no quase, no quero-mas-não-posso e deste fino limite não passava porque aí já seria aceitar a grande loucura que era a realidade – ou seriam as realidades? – interior. Sophia estava doente e a doença de que Sophia sofria não contava com pesquisas acadêmicas ou investimentos sérios. A doença de Sophia era a doença universal de seu século. O nome da doença de Sophia era O Mundo. Mas o que fazer, pois que se curar dO Mundo significaria necessariamente afirmar sua posição plurexistente na realidade e tornar-se não um ser de verdade, mas todos os seres possíveis sem perder a identidade? O que poderia fazer se sua própria cura ofenderia aos outros doentes e a própria doença?  

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