terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Sophia sabe mentir.

Uma tristeza que não era sua havia tomado conta de Sophia. “Soul fear, sou fria, sou-quem?: Sophia.” Ela havia permitido que aquilo a invadisse, docemente invadisse. Mas o que era? Pegava emprestada uma dor sobre a qual não tinha nenhum direito e não se sentia sequer arrependida. Não precisaria dissimular. Porque Sophia sofria sim, de uma dor não entendida. Tinha que mentir? Mentiria, então. Pelo menos dessa forma todos legitimariam seu sentimento: acreditando na mentira que ela inventara para sobreviver um pouco. “Como é fácil e insuportável mentir, como sou graciosamente dissimulada, sou desprezível”. O para dentro de Sophia era ativo e perturbador, mas o para fora era um rosto imóvel como o de uma estátua. Encenar fazia parte da mentira, mas lhe era tão natural. Havia aprendido com a mãe. Porque a mãe aprendera com a avó, remontando segredos de seu sexo milenar. Mas não era uma mentira condenável, assim como a maioria das mentiras das mulheres. Era apenas uma metonímia. Uma dor Sophia tinha, só havia “mudado de lugar”. Mas essa dor real era escondida, porque Sophia sabia que jamais seria aceita e legitimada. Para consolar-se, tomava para si uma outra dor. Uma dor que nela não doía, mas seria normal e aceitável demais que doesse. Uma dor que Sophia sentiria se não tivesse ido tão a fundo na vida. Mas Sophia tinha ido. E as coisas da superfície não doíam mais. O que doía estava para dentro e para baixo, o que doía era e deveria ser tão escondido como o prazer feminino. O que doía era tão inalcançável para si mesma, que não se dava ao trabalho de tornar à mostra. Só se pode confiar nos outros quando se confia em si mesma. Por isso, Sophia mentia. E dizia com os olhos: ai! Só com os olhos:ai! E todos a olhavam e pensavam: ela tem uma dor, que corresponde a um acontecimento. Mas a dor que Sophia tinha não correspondia a um acontecimento passível de ser conhecido. Correspondia a uma outra dor, uma dor que era só sua e de mais ninguém. Uma dor que correspondia um acontecimento invisível e flutuante. Então mentia, para viver mentia. Porque também era preciso manter o contato com o mundo exterior. Sendo sincera? Como? Não podia. Mentia porque preservava sua sanidade e queria para si também as facilidades do mundo que a cercava. Não queria uma vida inteira para dentro, Sophia era contemporânea demais, o efêmero a fascinava. Por isso precisava, “Ridiculamente preciso mentir, porque o mundo é louco e não se aceita, então devo me fingir de normal para que eles continuem fingindo que são normais, e fazendo de conta que estão me aceitando! A sinceridade só é permitida aos selvagens, aos que não questionam nos outros um nível de naturalidade acima da média: porque se reconhecem naturais e submissos.” Com quem poderia ser sincera na vida? Consigo mesma era duramente honesta, ao menos até o ponto que se conhecia a si mesma. Mas quem mais agüentaria tamanha sinceridade? Todos tão fechados, ensimesmados, escravos das facilidades do cotidiano! Pensar que o outro tem verdades tão cruas é aceitar que de repente, existe uma verdade dentro de você, capaz de transformar o sorriso arreganhado e irônico da vida em uma boca aberta de espanto, medo e dor. Por respeito a todos e a si mesma, mentia. E nessa linha fina entre o que era real e o que inventava, ia vivendo. Enquanto soubesse diferenciar os dois lados, estava tudo bem. Continuaria fingindo uma dor que não era sua, pra fazer valer uma dor que estava exausta de sentir. Sozinha, assombrada, Sophia.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Sophia, quem é?

Sophia é uma mulher conhecida. Mas quem conhece Sophia? Conhecer Sophia é uma maldição. Sophia não se deixa conhecer. Ela mesma sabe que se um dia chegar a saber quem é, morreu. Só conhece Sophia quem está no extremo: quem muito sabe ou quem nada sabe. Porque só se conhece Sophia por meio de muito raciocínio ou nenhum raciocínio. O conhecimento de Sophia não é permitido no meio termo. Sophia mal se conhece. E acha graça de quem a define. Sophia é vaidosa. Gosta de saber o que sabem dela. Assim se conhece mais. Mesmo que o que saibam seja uma mentira. Ela gosta. Ouve com atenção. E até concorda. Mas o que Sophia é, intrinsecamente é, escapa a todos. Nada se sabe sobre Sophia. "Quem sou?", pergunta Sophia. "Você é", responde Sophia. Tudo o mais é mera suposição. Para que Sophia se sinta realmente amada, é preciso perdoá-la. Perdoá-la por não ter uma identidade. Quem ama uma mulher sem identidade? Só mesmo alguém capaz de perdoar uma indigente. Porque o amor não ama a identidade: ama a essência. E essência não é a identidade. Essência não se define. E Sophia possui uma essência, só não a toca, nem a sabe. Apenas pressente que tem. E Sophia a busca. Sophia busca a própria essência, confundindo-a com identidade. A essência de Sophia é uma: é a que pode ser amada. A identidade de Sophia não. Porque ela não é apenas uma. Ela é pluriSophia. O que não tem nome em Sophia é seu núcleo. O núcleo de Sophia é passível de ser amado. Sophia, não. Não se conhece Sophia. Pressente-se seu núcleo. Por isso ama-se Sophia: por uma metáfora. Ama-se Sophia que não é Sophia propriamente dita, mas seu núcleo invisível. Só um louco é capaz de amar Sophia. Porque só os loucos perdoam.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Sins e nãos de Sophia.

Quantas pessoas Sophia consegue ser ao mesmo tempo? E não luta consigo mesma por não conseguir sem uma delas até o fim? Neste momento qual delas era?: a Sophia que queria um status. Odiava-se, como odiava-se por sentir tudo aquilo. No fundo, sabia que uma outra Sophia em si não precisava do status. Aqueles sorrisos? Sabia que eram efêmeros. Aqueles abraços? Sabia que não durariam mais do que cinco segundos, e que seriam logo esquecidos. Mas uma das Sophias dentro da plurexistente Sophia era amante do efêmero e do fútil. Era capaz de passar uma longa noite sem pensar em nada, sorrindo e fazendo que sim com a cabeça, apertando os olhos em eternos: sim, é verdade. E em movimentos bruscos, como se aquilo fosse vital: sim, sim, sim. Sim, vamos rir todos porque com todo mundo rindo esquecemos que o que mais queremos é chorar. E todos riam, preenchendo os segundos inteiros com concordâncias e amenidades para que as profundezas não fossem dilacerantemente tocadas. Sim, sim, freneticamente sim, alucinadamente sim, no mesmo ritmo que a música toca: simsimsim. Sophia agora era mulher, carne e inveja. "As mãos delicadas daquela menina me irritam" - pensava. "Ela concordando, como eu concordo, me irrita" - pensava. "Ela não tem o direito de dizer sim do mesmo modo que eu. Porque eu, Sophia, em outros casos digo não, não. E ela está sempre dizendo sim, sim. Mas quando os outros olham, ela, atriz, seriamente diz: não, não: mentindo! mentindo! Ninguém vê que ela mente?. Eu apenas omito. Oh, Vodka, obrigada, sim, sim. Como eu me odeio. Oh, foto?" Sorriu: "devo parecer feliz, se eu vender a minha felicidade, todos compram, quem não compra?" E disse: "sorriam, gente!". E em silêncio: "idiotas. O que é que eu estou fazendo aqui?" Sophia pensava e esquecia, odiava-se num segundo, no outro, dançando, amava-se novamente. Mas o amor que sentia por si mesma enquanto dançava era só pra que ela mesma acreditasse nesse amor. Dançando, acreditava. "Eu me amo, eu sorrio, eu amo as pessoas, isso é minha vida", pensava a Sophia. De repente um pensamento lhe ocorria: ele me ama, mas não como eu quero, eu quero que ele me ame e que todos saibam, eu não basto pra mim." Mas Sophia bastava-se, só não sabia disso. E não precisava daquilo, e não precisava de nada, e não precisava de ninguém. Mas aquela mentira era tão boa de acreditar. A mentira de precisar era tão difícil de se desvencilhar. Se prestasse mais atenção, Sophia veria que já tinha tudo: ele, a si mesma, uma vida pela frente. Mas quem está contente com isso? Não basta ter o ele, é preciso que o ele seja mais. Não queria flores nem nada: só queria o ele fortemente ao seu lado esquerdo, depois ao seu lado direito, e ao fim da noite dentro dela. E que todos dissessem: ele te ama. E de que adianta ter uma vida pela frente quando já se deixou uma vida para trás? Atordoada pensava: "quem sou eu? quem somos nós? o que fazemos no mundo?" E continuava: "só eu estou atordoada?, o que se passa com vocês?, o que se passa comigo? Por que não consigo ser a mim mesma, eu, Sophia nascida e criada, por que não posso ser só e simplesmente eu, uma e apenas uma Sophia? Direi: não bebo mais. Mas deixo isso para mais tarde, é tão bom beber. Uma das que existem em mim não precisa da vida noturna e nem de nada disso. Quero aniquilar todas as Sophias supérfluas e ficar com a que sou eu, mas todas estão acorrentadas, são carne e unha, uma na outra, siamesas. Corta-se uma, corta-se outra, são Sophias interdependentes. Vamos embora? Preciso tanto dormir, preciso tanto descansar, daqui a pouco minha mãe acorda e eu ainda não cheguei, ela vai ficar preocupada.” - Ah, Sophia, sua mãe está acostumada com você. Sophia estremeceu. Como é que a mãe ainda a suportava? Era uma filha linda, exemplar, fútil, vagabunda. Agora Sophia não precisava mais de porra nenhuma de status. Sophia queria mandar todos à merda e à grande e incomensurável puta que pariu. Até mesmo ele, se assim fosse preciso. Não queria abraço nenhum, cinco segundos eram demais. Essa era a Sophia que queria ser para sempre. A Sophia das virtudes eternas. Entrou no carro, encostou sua cabeça cansada e fingiu que dormia, para não ter que conversar. E, como em todas as outras vezes, chegou, abriu a porta do quarto e deitou. Agora ela dizia, sinceramente dizia: não!, não! No ritmo do silêncio ela repetia: nãonãonão. Sobre a colcha de culpa que insistia em tecer e se cobrir. Sob o fardo de viver em pleno século vinte e um. E dentro da nostalgia de nunca ter sido para sempre apenas uma só. Num sim e não contínuo. E num talvez perpétuo.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

O eu posso do poço de Sophia.


- Mas você sabe que está errada, Sophia!



- Não, não me venha agora com moralidades, você sabe que não é hora para isto. Por tudo que fiz, sinto uma alegria horripilante, que a princípio veio me violentando, me tomando, me afundando cada vez mais no fundo daquele poço que, tanto eu quanto você, imaginávamos que fosse sem fim. A felicidade inesperada veio e acendeu a luz. Não era um túnel, era um poço, no fundo dos poços, sabíamos: não há luz. Mas há, estou aqui para te contar isto: há uma luz no fim do poço. E pouco a pouco essa luz foi me mostrando que a água que eu imaginava suja, na verdade era tão cristalina quanto a água da fonte, porque era a própia água da fonte da vida. Resolvi então beber desta água que imaginava insalubre, mas que era o tempo todo assim, potável. Eu bebi do poço da felicidade impossível, da felicidade insuportável, que foi me transformando em possível e suportável. Passo a passo fui saciendo esta sede, e quem me bebia depois era a própria alegria imprópria, não aos poucos, mas aos golões, afobada, engasgada, embriagada. E toma, toma essa felicidade pra você, toma a felicidade que não é um poço escuro. E não espere que alguém venha confirmar que sim, você pode, porque agora é à tua própria lucidez enlouquecedora a que você deve se entregar, então se entregue, mergulha nesse poço, não se impeça nem se imponha, não se negue, toma a tua felicidade. Não espere que compreendam essa felicidade doida que a lucidez do fundo do poço iluminado te ensinou. Ninguém entende, sabe? você não entende, e eu não vou te cobrar que entenda, só não me venha agora com moralidades, porque essa luz ácida, forte-quase-morte, essa felicidade proibida me trouxe de volta a vida, primeiro me ofuscando a vista que quase, quase se perdeu e me fez perdida, mas escuta: me acostumei à luz. E esta luz, só eu vejo, essa luz que você chama de erro e que eu nomeio maior-acerto-da-minha-vida, essa luz que você chama de loucura e que eu ouso nomear de chama da única lucidez possível. Então não, entendeu? não! Mergulha nos teus poços e convive com teus escuros, com tuas sombras, com tuas águas geladas, com teu lodo, com a tua umidade. Tenha humildade para isto. Te desejo o fundo do poço que é teu fundo-mais-fundo, sofre tuas mágoas, bebe tuas podres águas, encara o cheiro fechado de tuas culpas, tuas solidões. Conhece antes cada uma delas e enlouqueça. COnvive com teus defeitos, com o efeito que a consciência da existência deles pode causar na tua vida, mas mergulha no fundo abismal do poço, afogue-se e tenha a experiência de quase-morte que eu tive. Então, só então, você será capaz de ver a luz, a luz de tua eletricidade, a tua lucidez, a tua resposta e a tua força de vida. Elas nunca vão estar na superfície, nunca vão estar na boca do poço, que é de onde você me olha e me julga imoral, mas eu estou no fundo, percorri o meu caminho, me atirei para dentro da boca, e estou aqui, no cu do poço, no sujo-imundo do poço, no asco no poço, estou aqui, no inaceitável do poço, no deplorável do poço, no eu posso do poço, entende? EU percorri o caminho da digestão e da indigestão, eu mulher-indigesta no fundo do poço, passei pela acidez do poço, estou no eu posso! no eu posso amoral do poço. Então não, não me venha com moralidades, não agora, não mais, não nunca, porque este papo não engulo mais.
Mas olha, cuidado com o poço, porque não são todos os que chegam ao eu posso do poço. As pessoas enlouquecem, as pessoas perdem o contato com a realidade se a luz se negar a vir, porque pode acontecer de ela não vir. Porque ela não vem, é você quem a cria, você a cria por necessidade, e primeiro acha que ela veio e foi um presente, e depois descobre que ela estava presente em você: você só não sabia onde é que estava o interruptor. O interruptor do escuro do poço. Mas se ela vem, se você a encontra, de repente tudo fica muito claro, mais claro do que aí em cima. E você pensa: como é possível? Todos ensinam que o fundo do poço é ruim, é desgosto, é desgaste. E como você foi obediente por toda a sua vida, como é de costume, você repete pra si mesmo: não se pode! E então você não chega ao eu posso do poço, ao eu posso amoral do poço. E você se vê no cu do poço, e acha que é tudo uma merda, que você é uma merda, que chegou ao fim-sem-fim do poço. Então não, se você tem medo, se não quer se arriscar, você não pode, não pode me dizer que estou errada, enquanto que eu, daqui do fundo do mundo do poço, te vejo de baixo mas estou acima, nem melhor, nem pior: apenas mais-fundo-mais-acima, não do bem e do mal, mas do teu bem e do teu mal. Porque eu, do fundo-mais-fundo de mim, descobri que eu posso. E eu posso.

tem um texto acontecendo dentro de mim.

tem um texto acontecendo dentro de mim. quando tem um texto acontecendo dentro de mim, eu fico feito barata tonta, a percorrer caminhos silenciosos que nenhum dos meus amigos jamais poderiam advinhar.

este texto que está acontecendo dentro de mim ainda não pronunciou seu tema: às vezes acho que é sobre amor, mas só de amor ele não é. na verdade, eu me sinto contrariada ao falar de amor: não quero. estou com preguiça de falar de amor.

mas se esse texto que está acontecendo dentro de mim quiser falar de amor, nada terei a fazer a não ser humildemente escrevê-lo. de que tipo de amor quer esse meu texto me falar? do meu amor? do conceito de amor?

ao atravessar a rua, tão logo me dou conta que estou vazia de pensamentos, coloco-me involuntariamente a pensar. é ele que está pensando em mim. hoje mesmo ele conversou comigo, disse-me o seguinte:

- seu amor é baixo e seu amor é alto, nunca está na mesma medida que você, portanto, não é passível de ser explicado. é instinto e é inspiração, não é nunca consciência.

neste exato momento eu quis muito ter tempo para sentar e escrever. talvez aquele fosse o momento certo, talvez os astros estivessem na posição exata e as horas marcassem um número cabalístico para o nascimento das palavras cheias de significado, que transfigurariam o meu rosto e aliviariam a minha alma tão logo o último ponto delimitasse o final.

se é que esse texto terminaria mesmo com um ponto final: poderia terminar sem ponto nenhum, com dois pontos, ou uma vírgula. em último caso, com uma interrogação, o que neste momento passou pela minha cabeça que seria cafona demais - não me pergunte por quê.

mas eu não tinha tempo e perdi o momento. ou será que não? sabe aquela coisa do não-aconteceu-não-era-pra-ser? então, acho que não era mesmo. porque o texto continua, de modo confuso, a acontecer dentro de mim! então escrevo sobre ele. escrever sobre ele não é escrevê-lo. curioso analisar algo que ainda nem sequer chegou a ser.

assim: isso aqui é uma distração, ao escrever sobre ele, e não o texto propriamente dito, não tenho obrigação nenhuma de acertar. nem de pensar se ele é bom ou ruim. enquanto isso, o texto que está acontecendo em mim continua acontecendo, sem obrigação nenhuma de se fazer pronto logo de uma vez.

porque eu tenho dessas. é saber que algo novo está para brotar que faço que faço pra acelerar o processo. e sofro porque acaba tudo tão mal feito! o texto que, no instante preciso, aconteceria para fora de mim, de um jeito natural e espontâneo, bonito como a luz do sol pouco a pouco tomando conta da manhã, acaba sendo artificialmente aceso como a uma lâmpada em noite tonta.

alguma experiência me falta para que ele se pronuncie.por isso me coloquei a escrever. a brincar suavemente enquanto a coisa densa se passa dentro de mim. a girar o dedo em torno de outras ideias e até mesmo em torno da circunferência do texto que acontece em mim, mas sem atingir fatalmente seu núcleo, pois isso seria escrevê-lo e não é o que eu quero. aliás, é o que eu quero, mas não posso. se pudesse, estaria o fazendo neste exato momento.

na verdade ele estaria se fazendo. e eu humilde, resignada. instrumento da linguagem e da minha mais íntima humanidade. mas enquanto ele não quer vir - porque os textos que acontecem em mim têm a péssima mania de ter vontade, e de ser muito mais geniosos do que eu, teimosos, irrequietos - eu estarei aqui, fazendo outras coisas que não são uma tentativa de escrevê-lo. apenas de pressenti-lo.

porque pressentir o texto que acontece em mim é permitido. e não compromete seu amadurecimento. para proteger o texto que acontece em mim é que eu mesma me trouxe até a cadeira do quarto. porque estou inquieta e preciso falar. despretensiosa e irrelevante: falar.

até que de repente ele venha. e fale ele mesmo por mim.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

o insuportável amor tolerante


não, meu amor. não fomos feitos um pro outro. nosso amor se dá na separação irremediável de nossas vidas. nossa felicidade é efêmera. não existe comunhão dentro do nosso amor, pois eles se dão em momentos distintos. descubro que te amo agora, num abraço, dentro de uma distração sua. depois, eu que me distraio e pisco. e você se dá conta que me ama. esse amor que nunca fora simultâneo.

seria trágico se não fosse lindo. sabemos de tudo isso: que não seremos felizes para sempre, que não nos amaremos um ao outro no mesmo segundo. sabemos que, acima de tudo, temos e teremos raiva um do outro porque não temos o que esperamos de nós.

somos dois animais entregues demais ao cansaço. não nos suportamos. mas temos a consciência de que a vida se tornaria ainda mais insuportável sem essa presença cansativa de nós dois.

te amar não é uma escolha, não. eu amaria muito mais facilmente as pessoas dispostas e inquietas. mas eu amo você, que é manso e apático, mas que me deixa existir por completo.

e eu sei que igualmente, sem direito de escolha: você me ama também. pois como seria fácil amar uma mulher quieta e regular como a lua. mas você me ama. eu, que sou inconstante como o clima.

há, pois, para onde fugir? depois de tantas tentativas, amor, ridículo amor, assumo as dores de não poder deixar de te amar. e só não te peço para que faça o mesmo, porque sei que você também não tem alternativa.

naturais  então, seguiremos. unidos pelo que nos separa. pelo amor nada romântico, que não será roteiro de filme, nem letra de música. sim, seguiremos. 

desencantados, resignados e exaustos.

eu não sou eu.


ser-e-não-ser autobiográfica, intermitente. sou um personagem de mim mesmo, e o que é em mim não tem nada a ver comigo, ao mesmo tempo que me é. não leve minhas palavras ao pé da letra. elas só querem te confundir. sou-e-não-sou eu. de mentirinha e de verdadinha. sou sim, sou não.

dá licença: eu existo, mas sou bem menos e sou bem mais do que isto. isto me permite várias existências. deixe todas elas em paz. elas todas me protegem de mim. elas são eus e não-eus líricos.

não confie. não interrogue. não pessoalize. aqui é drama, meu bem. qualquer semelhança com a vida real, é e não é mera coincidência. escrever como quem se defende: eu me lanço. e tudo o que não sou vem junto.

eu não sou eu.

joelhos doloridos

eu imaginava uma vida perfeita pra nós dois. você seria pra sempre meu, e eu seria pra sempre sua. eu não conhecia o tempo, e não sabia que as pequenas feridas que iam se abrindo enquanto estávamos sendo, ficariam abertas por um período maior do que o esperado.

mas o fato é que eu não esperava tempo nenhum. e como uma criança quando rala a perna numa queda de patins, eu sacodia a poeira e continuava a brincar. sem saber que com essas quedas, meus joelhos iam colecionando machucados internos, que mais tarde doiriam muito, e dificultariam bastante a flexão dos meus membros.

e estão doendo, agora. agora sei que o tempo existe. agora, que não há mais volta, sei que deveria ter me protegido um pouco mais. mas as crianças nunca se importam: só querem brincar.

se eu pudesse escolher, continuaria vivendo com a graça das crianças, despreocupada e feliz com meus patins detonados. mas meus joelhos latejam, me lembrando sempre dos efeitos do tempo.

você evitou muitas das minhas quedas, é verdade. mas quantas delas não evitou? pior: quantas delas você mesmo causou? obviamente, você nunca seria capaz de, intencionalmente, me machucar. mas tá doendo, pra quem é que eu grito, pra quem é que eu peço socorro?

e se nós realmente estivéssemos conversando, neste momento você se defenderia. e eu diria que não, que você não tem do que se defender. nenhum de nós é culpado. estávamos muito ocupados vivendo o presente para nos preocuparmos com o futuro.

cada um com sua ingenuidade característica: eu, a das crianças. você, a dos adultos.

tenho um pouco do teu olhar. percebo isso quando me vejo no espelho. e sei que pelos olhos se conhece a alma de uma pessoa. são meus olhos que não me deixam negar: sou sua filha.

eu imaginava uma vida perfeita para nós dois. hoje, eu só quero que as nossas feridas não nos impeçam de caminhar até o fim. e que não precisemos da solitária muleta para seguirmos em frente.

imperfeitos, coxos, inflexíveis. mas ainda assim de mãos dadas. até o não-mais-ver da estrada.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

dEUs


deus   é  língua
sue
use
encontre
seu
deus


Ssssssshhhh


Ssssssshhhh. Ouve o som do silêncio. Tá muito barulho lá fora, então sssshhhh. Respira fundo. Afrouxa a carne. O seu sangue faz barulho enquanto corre em suas veias. Sssshhh. Não há nada a temer. Não pense, agora. Fique quieta. Veja a vida fluir. Olhe pela janela, a beleza existe, e não é feita de blush e batom. Consegue perceber o ritmo do mundo? Sssshhh. Não se descontrole. O seu coração está apertado, porque você é uma estranha, não se reconhece mais. Se debate, querendo voltar atrás. Mas é preciso ir, deixar ir, evoluir. Você está cansada, é de se entender. Brincou com o tarot, achava graça em brincar com o destino, até se encontrar com ele. Mas ssssshhh. Não precisa se assustar. A vida vibra, vai, vem, volta, e muda tudo, sem parar. É assim. Você muda também. Então solta o laço. Abra os braços. Abrace a vida. Viva o segundo. Não carregue o peso do mundo. Sssshhhh.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

leitura semiótica

é difícil ler
essa meia verdade
que é você
com essa minha
semiótica de bar

basta,
estou farta

pra acabar
pague a minha cerveja
pegue o seu cigarro
pique minhas cartas
e au revoir

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

o nascimento do poema


o nascimento do poema


o poema é um parto
a poeta é a parteira
a gestação é que é esquisita:
pode durar meia hora
ou uma vida inteira

caderno


caderno


meu coração é um caderno
pequeno tipo brochura
infestado de rasuras
e folhas pela metade
de legível, só tem um nome
está escrito à caneta
pena ter de esconder
lá na última gaveta

precipício

precipício

quando me precipitei
e te disse adeus
foi como uma queda sem fim

mas não fui eu quem caiu no abismo
:foi o abismo que caiu em mim

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

vício


Fume este cigarro até o fim, mesmo com todo esse enjôo, mesmo com toda essa vida, mesmo com todos esses planos sem nexo, complexos-convexos-complexos. Traga com vontade, traga a taça de vinho, traga o copo de vodka com coca com soda com melodrama, traga toda sua trama e depois deita na tua cama, mas antes fuma este cigarro até o fim. Fecha e aperta os olhos, lembra da tua infância, dos teus descompromissos, lembra de você aprendendo a andar de bicicleta, ralando o joelho, o cotovelo, as pernas pretas de graxa e o sorriso sem graça que você dava quando caía de patins. Fuma, fuma esse cigarro maldito até o fim. Force a fumaça pra dentro mesmo querendo vomitar, mesmo querendo parar de fumar, agora você está aqui e agora vai até o fim e agora quer jogar tudo pro alto, joga, joga, mas segura o cigarro lá em cima, com as mãos esticadas para um deus que não existe e que se existe não tá nem em cima nem embaixo, mas dentro, lembra? Lembra, com os olhos borrados de rímel você lembra, mas logo se força a esquecer, porque pensar nisso dá ânsias, e força e forja mais um trago, fingindo força. Fuma, fuma até o fim. Assim que acabar teu cigarro para onde você vai? Acha que está segurando, mas quem te segura é ele. Para onde você vai, me diz? Larga tudo: esse emprego, seus melhores piores amigos, larga essa vida larga-gorda-inútil, essa cadeira em que você senta sua bunda preguiçosa, esse chuveiro quebrado, esse lençol velho, larga. E agora que o cigarro acabou, deita e dorme. E que seus sonhos tragam mais dúvidas para seus dias.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Travessia


Travessia

Tenho medo do que me espera, mas não tenho medo do medo. Quando eu chegar ao que me espera, já não serei mais eu, e não terei mais por que temer. Há um eu muito maior do que eu do outro lado do medo insuportável. E por não suportá-lo, o atravessarei. É para o outro lado de mim que vou.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

engano


escrevo pelo dever pelo direito pelo avesso escrevo pelo crer pelo entreter pelo adereço escrevo pelos pelados peludas pelancudas desacudidas por quem não tem roupa pra vestir pelas galinhas depenadas pelas calmas pelo sentir pelas almas penadas escrevo pelo cravo pela rosa pela espinha infeccionada dolorosa quando tocada escrevo por amores longe por amigos perto pela água pelo oásis do meu deserto escrevo pelo desertor e pelo soldado pela esperança pelo desesperado escrevo pelo futuro que não vem pelo passado que não foi pelo presente que foge pelo gozo pelo nojo pelo álcool, comida pelo engov pelos homens que amam e não possuem sono pelo calor pelo abano pelos abonados africanos asiáticos sul-americanos pelos concretistas tropicalistas modernistas claricianos pelos músicos e pelos profanos escrever deve ser meu maior engano


gravuras


gravuras

nó na garganta
e não é a gravata
são teus olhos graves
como gravuras inertes

            fazendo greve

desgosto


desgosto
sapato gasto
chiclete sem gosto
se hoje te encontrar
na rua
viro o rosto