quinta-feira, 18 de março de 2010


Não é o mundo que me espanta. Sou eu mesma. As coisas que co-existem dentro de mim me assustam muito. São contraditórias, são demais de muitas. Eu sou essas coisas. Eu sou eus. Incontáveis. A identidade não dói em você? Porque a mim, dilacera. A unicidade de me ser me ofende.

quarta-feira, 17 de março de 2010

grito de mulher

dispenso sua massa
 ence
       fálica


fico com o meu
tão temido íntimo tímido
buraco negro

provação

nem aquilo que pintam
nem seu contorno
nem good night
nem bom giorno
meu o amor é o pão cru
que o diabo
ama / sou


e que nunca sairá
do forno

pensando baixo

divagar

devagar
e baixinho

tal é o
o caminho
da low cura

aviso

o amor é um
desavisado
e ai daquele
que o avisar

consumidora

teu corpo à vista
tua alma a prazo
é assim que te amo
se eu acabar no prejuízo
com quem eu reclamo?
nem prosa
nem poesia
a vida plausível
é inescrevível

quem diria?

é isso

sem compromissos
nem promessas
nosso amor
não tem essa
de pressa

terça-feira, 16 de março de 2010

A doença de Sophia.


Aprendeu que não existia tempo, e sim por enquanto. Não um aprendizado que se aprende ao ler belos e livres livros, mas aquela descoberta diária da inexistência de qualquer possível linearidade da vida. Ela ultrapassara o tempo. Além do mais, conseguia agora definir que estava doente, muito doente, o que antes era apenas uma impressão que sentia com todo o seu corpinho miúdo de mulher. Por que, afinal, tudo a invadia tanto? Por que, afinal, quase permitia avançar os limites? Quem a visse passar com seus passos de cor azul-comum pelas ruas do centro jamais imaginaria os passos que dava por dentro, seus tropeços, seus percalços. Se existisse o dom da clarividência, veriam nela a pessoa perturbada que sempre fora, mas como era contida, ela caminhava azul, como se nada gritasse. De certa forma, ela aprendera a manter a classe, e manter a classe significava jamais transparecer uma pessoa doente. Mas ela sabia que era doente, que estava doente. O assédio de tudo era enorme, e para aceitá-los todos, teria de ser não apenas uma pessoa, não apenas ela mesma, a pessoa que tinha um nome e nele se reconhecia para fins práticos, um ser eloquente e concentrado até o seu próprio núcleo, como costumava ser sem dificuldade até antes da primeira menstruação, mas teria de ter todas aquelas personalidades que a assediavam, oh deus, como assediavam!, ela teria de ser a  moça com grandes óculos e cigarro na boca, ao mesmo tempo que teria de ser uma mãe brincando com seu bebê gordo no colo, e a sarcástica mulher calada que criticava secretamente a tudo e a todos, também aquela mulher que gritava histericamente com o namorado, teria de ser a invejável dama do escritório, a dama respeitada, teria de ser uma mulher que ardentemente desejava beijos femininos, e também a menina que dançava à noite para viver com menos dor os dias. Mas bravamente Sophia rejeitava todas as personalidades, ficava no quase, no quero-mas-não-posso e deste fino limite não passava porque aí já seria aceitar a grande loucura que era a realidade – ou seriam as realidades? – interior. Sophia estava doente e a doença de que Sophia sofria não contava com pesquisas acadêmicas ou investimentos sérios. A doença de Sophia era a doença universal de seu século. O nome da doença de Sophia era O Mundo. Mas o que fazer, pois que se curar dO Mundo significaria necessariamente afirmar sua posição plurexistente na realidade e tornar-se não um ser de verdade, mas todos os seres possíveis sem perder a identidade? O que poderia fazer se sua própria cura ofenderia aos outros doentes e a própria doença?  

quinta-feira, 11 de março de 2010

Sophia e o amor sentido no espaço de uma música.

O silêncio reinava mudo entre ambos: nada tinham a falar, nem queriam ou precisavam. A música preenchia todos os espaços da sala – os vazios, os cheios, o coração dela. O fato de serem dois estúpidos em música era uma dádiva mansa: eles ouviam, quietos. A ela, o som inundava. Entregue ao que estava acontecendo, seu coração se aqueceu. A música intensificava o que ela sentia por ele.
 Queria tanto contar-lhe esse grave segredo, mas calava-se. Queria beijar-lhe delicadamente os lábios bobos, lábios prontos e moles que poderiam ser beijados antes, durante ou depois da música. Mas isso a entregaria, e ao seu segredo. O peito palpitava seco, a boca molhava esdrúxula. Será que ele sentia o mesmo? Queria um sinal da parte dele, qualquer um. Ele poderia, com seus cílios tristes, demorar-se um pouco mais para piscar, ou com seus pulmões titubeantes, respirar com certa dificuldade, mas de um modo profundo, até massagear seu abdômen por dentro, como um bebê satisfeito. Mas nada nele havia mudado, sua expressão era insuportavelmente idêntica à expressão anterior à musica. Como se não houvesse nenhum resquício de mágica naquele instante. E ela tão enfeitiçada: como podia? Teria ele o mesmo medo que ela? Será que ele também esperava por um sinal?
Depois, ela pensou que se houvesse comunicação entre eles, deveria ser a menor e menos ruidosa possível. Não, não!, não deveria haver sinal algum. Ela desejava guardar aquilo como a um tesouro que, por estar escondido e não ter valor de troca, valia infinitamente mais. O que a música despertava nela era diamante, e se descoberto, posto aos olhos, se dissiparia em carvão. Quanto tempo tinha aquela música? Cinco minutos? Não, eram cinco séculos. Como se ela o conhecesse há cinco séculos e desde sempre tivesse sido sua. Escandalizada com o que estava percebendo, atingira um ponto íntimo no centro de seu corpo, e ali sentia a vida pulsando, expectante.
Não podia ser que ele não sentia tal experiência. Poderia olhar para ele com um tom invisível nos olhos e mover os lábios em um “eu te amo” . Mas o que é que isto queria dizer? O que a música mostrava esmagadoramente a ela e sem escapatória era que aquilo que sentia ultrapassava irremediavelmente “eu te amo”, tão pequeno e pouco. A música era ele, e ela era um ouvido ávido: dentro dela, ele fazia sentido, se fazia sentido. Era isso, ela era um ouvido.
Não é amor, não é! pensava ela cansada, o coração assaltando-a, em saltos, a boca imóvel. Não é amor, porque amor é aquela coisa boba que sinto quando estamos à rua de mãos dadas, voltando contentes da sorveteria. Amor é o que sinto quando acordo de um pesadelo pesado e vejo que ele não me soltou do abraço que dera enquanto adormecíamos. Essa coisa tosca e cotidiana é que é o amor.
Mas o que estava acontecendo na sala fazia de ambos seus próprios ancestrais: há cinco séculos guardavam o segredo da comunhão. Sim, ele sentia o mesmo, ela pensava que sim, que sim!  e secretos, silenciamos...para sermos eternos. Aquele segredo deveria compartilhar uma mesma essência com a eternidade: era necessário viver ignorando-a, submissos, absurdos e normais.
Até que a música acabasse, suportaria o peso impossível de carregar que era o que sentia por ele. Será que ele sentia o mesmo? A dúvida infugível. Sentia o fim lento da música se aproximando, e sentia o medo extremo de jamais poder novamente atingir-se tanto. Quando enfim o silêncio imperou absoluto, ela levantou-se com sono, estreita:
-Tive um dia difícil hoje no trabalho. – Compartilhou com ele.
E foram dormir. Abraçados e comuns como um dia de chuva.

Quando um peixe afrontou Sophia.

Em uma neutra manhã de ar parado, sentada no sofá do otorrinolaringologista, olhei distraidamente e sem olhar para o grande e calmo aquário. Enquanto nada estava vendo, meus olhos fixos atravessavam a água para além do que me fora dado enxergar. Eu que tanto pertencia e me esforçava a pertencer à raça humana e à espécie feminina, também tinha meus momentos de extinção. Despertencida, extinguia-me perante a minha consciência: não era nem existo, nem não existo. Era qualquer coisa inatingível e desdobrada de mim mesma, como se por alguns instantes não tivesse jamais sequer nascido. Parada fiquei, sem movimentar minhas órbitas espantadas. Aquilo tudo era um outro mundo, certamente que era. E continuaria sendo, não tivesse o brusco movimento do peixe me despertado do meu elíptico sono profundo. Eu vira. Eu vira o peixe e isto era muito para mim, tão desconcertada, perguntando: acordei? dormi? quanto tempo? O fato é que nada mais era possível fazer. Eu vira o peixe e de repente fiquei profunda como o mar e sufocada como um aquário de consultório. Quem me salvaria do peixe? Mas eu queria ser salva? Aquilo era uma afronta gratuita que a vida sorrateiramente oferecia para mim. Era a vingança mórbida de um peixe autista. Fisgara-me com a total indiferença de um peixe perante o mundo dos que respiram. Assustada com o que acontecia, dilacerada e machucada por um peixe que mal podia conceber a ideia de que uma mulher sente, um peixe que jamais conceberia ideia alguma, em mudo grito eu me comportava dentro da sala de espera, como mamãe havia me ensinado um dia. Ah, e eu esperava sim. Mas não esperava por aquilo, ninguém nunca esperaria ser fisgado por um peixe do aquário do consultório. A quem eu contaria tamanho absurdo? Quem acreditaria no que estava a suceder? Um louco? Um louco! e me achei louca e sozinha, idiotizada por um mundo que nunca, nunca fora meu aquário. Encarei o peixe alheio com firmeza e arrogância: você não é capaz de me ver, peixe, nasceu sem merecer a habilidade de olhar para uma mulher e dizer: és linda mesmo que não tenhas o peso que desejas. Não fora dado a você, peixe, a condição em que eu me encontro e me orgulho. Peixe burro e inadequado. Sabe o que você faz no mundo? Nada. Mas do mesmo nada, eu mesma sabia que era feita a minha existência. Então, como se o peixe tivesse o direito de resposta, houve uma segunda voz, vinda de algum lugar entre o centro de minha cabeça e o de dentro de meus ouvidos, perturbando-me com questões esdrúxulas: como sabes? telepaticamente assim: como sabes? ininterruptamente assim como sabes? como sabes? como sabes? E como é que eu sabia que os peixes não eram tão ou mais sensíveis que eu? Não era de inteligência que eu estava falando, mas de sensibilidade. Eu não queria saber se o peixe era inteligente. O que desesperadamente me intrigava era um massacre em forma de pergunta: e se, naquele momento, o peixe espiritualmente me compreendia? Com um outro sistema de compreensão, sem nenhuma aparência ou gesto que lhe revelasse a empatia, era possível então o peixe ser capaz de sentir o que sinto, com a mesma intensidade ou intensidade ainda maior? Por que eu precisava, aflita e descabida, de uma prova? Dai-me uma prova, peixe, de quem você é, daquilo que é capaz. E a prova me fora negada. Porque não era ele o escolhido para ser testado, eu é que estava sendo. E com a limitadíssima natureza de ser humano, eu tentava ser entendida por um peixe. Oh, peixe, me entenda, me olhe, não seja alheio à minha existência de mulher. Então era verdade: peixes não falam. Aquilo que sempre soubera sem nunca questionar, havia saído de dentro de meu peito sacudido: peixes não falam. Como uma afirmação óbvia e por isso mesmo velada, e que os professores nunca ensinam porque é coisa que se aprende e não que se ensina: não falam. Ou sou eu que não falo a língua muda e profunda do peixe? Teria ele um self? Um peixe não tem sangue, não é feito da minha matéria. Mas não? O que um peixe faz?: Nada. Invejei a grande liberdade de fazer: nada. E por um momento, e era um momento, por mais eterno que parecesse, desejei ardentemente não ter sangue e não arder. Eu, que tanto sofria com a falta de ar, invejei o peixe vivo pois que a ele ar sempre faltara e isso o fazia viver. A esta altura, o peixe me cansava com sua capacidade de ser mudo. Ou então era verdade: ! . Eu, que há pouco, dentro da neutra manhã de ar parado e sentada no sofá, infinita e expectante, eu, que tanto aguardava meu nome com os ouvidos atentos e que me esforçava para pertencer a um grupo, cardume, grupo, eu, este eu que já não sabia mais o que era, o que fora, o que viria a ser, se é que viria, pertencia com ódio, repugnância e uma extrema propriedade, à raça humana de espécie única. Então era verdade: os seres humanos são surdos.

segunda-feira, 8 de março de 2010

discurso

seu dis
curso
me des
cursa


por quê?
me diz?

chá de cadeira

insônia
ih, natacha

[nem chá
me serve

só o de cadeira
onde me sinto
à beira da cama
como um cão insano
sem dono

contemplando a luta
filhadaputa
entre o poema
e o sono]

mantra para uma flor que versa

você tem que fruir
o que fluir

o que florir
flores serão

dedo na garganta

minha dor
é bilelíngue
[voo][mito]
que vem da ânsia
de tornar pública
minha angústia
privada

poema
é descarga

par

na d[ansia]
dos anos
eu perdi
o ritmo
você pisou
no meu pé

não calo
mas tão bem
não reclamo

pois por mais
que acabe
a música
não desistimos
de bailar

à procura da cura.

para drummond
penetra barulhamente
no reino da poesia
lá estão os poemas
que esperam ser gritos
ei-los acompanhados das velhas ideias
e falantes, em estado de desespero
não espera, ou ele te consome
com seu poder de espanto
e seu poder de lou[cura]

instinto coletivo na voz de uma mulher

quando escrevo
o que [p]arte
de mim
não me parece
             m[eu]

eu sou[l] nós
atada ao todo

[comun]icando
e t[oca]ndo

o sent
himen
todo
mundo

sexta-feira, 5 de março de 2010