quinta-feira, 11 de março de 2010

Quando um peixe afrontou Sophia.

Em uma neutra manhã de ar parado, sentada no sofá do otorrinolaringologista, olhei distraidamente e sem olhar para o grande e calmo aquário. Enquanto nada estava vendo, meus olhos fixos atravessavam a água para além do que me fora dado enxergar. Eu que tanto pertencia e me esforçava a pertencer à raça humana e à espécie feminina, também tinha meus momentos de extinção. Despertencida, extinguia-me perante a minha consciência: não era nem existo, nem não existo. Era qualquer coisa inatingível e desdobrada de mim mesma, como se por alguns instantes não tivesse jamais sequer nascido. Parada fiquei, sem movimentar minhas órbitas espantadas. Aquilo tudo era um outro mundo, certamente que era. E continuaria sendo, não tivesse o brusco movimento do peixe me despertado do meu elíptico sono profundo. Eu vira. Eu vira o peixe e isto era muito para mim, tão desconcertada, perguntando: acordei? dormi? quanto tempo? O fato é que nada mais era possível fazer. Eu vira o peixe e de repente fiquei profunda como o mar e sufocada como um aquário de consultório. Quem me salvaria do peixe? Mas eu queria ser salva? Aquilo era uma afronta gratuita que a vida sorrateiramente oferecia para mim. Era a vingança mórbida de um peixe autista. Fisgara-me com a total indiferença de um peixe perante o mundo dos que respiram. Assustada com o que acontecia, dilacerada e machucada por um peixe que mal podia conceber a ideia de que uma mulher sente, um peixe que jamais conceberia ideia alguma, em mudo grito eu me comportava dentro da sala de espera, como mamãe havia me ensinado um dia. Ah, e eu esperava sim. Mas não esperava por aquilo, ninguém nunca esperaria ser fisgado por um peixe do aquário do consultório. A quem eu contaria tamanho absurdo? Quem acreditaria no que estava a suceder? Um louco? Um louco! e me achei louca e sozinha, idiotizada por um mundo que nunca, nunca fora meu aquário. Encarei o peixe alheio com firmeza e arrogância: você não é capaz de me ver, peixe, nasceu sem merecer a habilidade de olhar para uma mulher e dizer: és linda mesmo que não tenhas o peso que desejas. Não fora dado a você, peixe, a condição em que eu me encontro e me orgulho. Peixe burro e inadequado. Sabe o que você faz no mundo? Nada. Mas do mesmo nada, eu mesma sabia que era feita a minha existência. Então, como se o peixe tivesse o direito de resposta, houve uma segunda voz, vinda de algum lugar entre o centro de minha cabeça e o de dentro de meus ouvidos, perturbando-me com questões esdrúxulas: como sabes? telepaticamente assim: como sabes? ininterruptamente assim como sabes? como sabes? como sabes? E como é que eu sabia que os peixes não eram tão ou mais sensíveis que eu? Não era de inteligência que eu estava falando, mas de sensibilidade. Eu não queria saber se o peixe era inteligente. O que desesperadamente me intrigava era um massacre em forma de pergunta: e se, naquele momento, o peixe espiritualmente me compreendia? Com um outro sistema de compreensão, sem nenhuma aparência ou gesto que lhe revelasse a empatia, era possível então o peixe ser capaz de sentir o que sinto, com a mesma intensidade ou intensidade ainda maior? Por que eu precisava, aflita e descabida, de uma prova? Dai-me uma prova, peixe, de quem você é, daquilo que é capaz. E a prova me fora negada. Porque não era ele o escolhido para ser testado, eu é que estava sendo. E com a limitadíssima natureza de ser humano, eu tentava ser entendida por um peixe. Oh, peixe, me entenda, me olhe, não seja alheio à minha existência de mulher. Então era verdade: peixes não falam. Aquilo que sempre soubera sem nunca questionar, havia saído de dentro de meu peito sacudido: peixes não falam. Como uma afirmação óbvia e por isso mesmo velada, e que os professores nunca ensinam porque é coisa que se aprende e não que se ensina: não falam. Ou sou eu que não falo a língua muda e profunda do peixe? Teria ele um self? Um peixe não tem sangue, não é feito da minha matéria. Mas não? O que um peixe faz?: Nada. Invejei a grande liberdade de fazer: nada. E por um momento, e era um momento, por mais eterno que parecesse, desejei ardentemente não ter sangue e não arder. Eu, que tanto sofria com a falta de ar, invejei o peixe vivo pois que a ele ar sempre faltara e isso o fazia viver. A esta altura, o peixe me cansava com sua capacidade de ser mudo. Ou então era verdade: ! . Eu, que há pouco, dentro da neutra manhã de ar parado e sentada no sofá, infinita e expectante, eu, que tanto aguardava meu nome com os ouvidos atentos e que me esforçava para pertencer a um grupo, cardume, grupo, eu, este eu que já não sabia mais o que era, o que fora, o que viria a ser, se é que viria, pertencia com ódio, repugnância e uma extrema propriedade, à raça humana de espécie única. Então era verdade: os seres humanos são surdos.

1 comentário:

  1. Será que foi isso que Cartola sentiu quando escreveu "as rosas não falam"?
    (:
    eu acho que falam sim. a gente que não aprendeu a ouvir ainda.
    (;

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