tem um texto acontecendo dentro de mim. quando tem um texto acontecendo dentro de mim, eu fico feito barata tonta, a percorrer caminhos silenciosos que nenhum dos meus amigos jamais poderiam advinhar.
este texto que está acontecendo dentro de mim ainda não pronunciou seu tema: às vezes acho que é sobre amor, mas só de amor ele não é. na verdade, eu me sinto contrariada ao falar de amor: não quero. estou com preguiça de falar de amor.
mas se esse texto que está acontecendo dentro de mim quiser falar de amor, nada terei a fazer a não ser humildemente escrevê-lo. de que tipo de amor quer esse meu texto me falar? do meu amor? do conceito de amor?
ao atravessar a rua, tão logo me dou conta que estou vazia de pensamentos, coloco-me involuntariamente a pensar. é ele que está pensando em mim. hoje mesmo ele conversou comigo, disse-me o seguinte:
- seu amor é baixo e seu amor é alto, nunca está na mesma medida que você, portanto, não é passível de ser explicado. é instinto e é inspiração, não é nunca consciência.
neste exato momento eu quis muito ter tempo para sentar e escrever. talvez aquele fosse o momento certo, talvez os astros estivessem na posição exata e as horas marcassem um número cabalístico para o nascimento das palavras cheias de significado, que transfigurariam o meu rosto e aliviariam a minha alma tão logo o último ponto delimitasse o final.
se é que esse texto terminaria mesmo com um ponto final: poderia terminar sem ponto nenhum, com dois pontos, ou uma vírgula. em último caso, com uma interrogação, o que neste momento passou pela minha cabeça que seria cafona demais - não me pergunte por quê.
mas eu não tinha tempo e perdi o momento. ou será que não? sabe aquela coisa do não-aconteceu-não-era-pra-ser? então, acho que não era mesmo. porque o texto continua, de modo confuso, a acontecer dentro de mim! então escrevo sobre ele. escrever sobre ele não é escrevê-lo. curioso analisar algo que ainda nem sequer chegou a ser.
assim: isso aqui é uma distração, ao escrever sobre ele, e não o texto propriamente dito, não tenho obrigação nenhuma de acertar. nem de pensar se ele é bom ou ruim. enquanto isso, o texto que está acontecendo em mim continua acontecendo, sem obrigação nenhuma de se fazer pronto logo de uma vez.
porque eu tenho dessas. é saber que algo novo está para brotar que faço que faço pra acelerar o processo. e sofro porque acaba tudo tão mal feito! o texto que, no instante preciso, aconteceria para fora de mim, de um jeito natural e espontâneo, bonito como a luz do sol pouco a pouco tomando conta da manhã, acaba sendo artificialmente aceso como a uma lâmpada em noite tonta.
alguma experiência me falta para que ele se pronuncie.por isso me coloquei a escrever. a brincar suavemente enquanto a coisa densa se passa dentro de mim. a girar o dedo em torno de outras ideias e até mesmo em torno da circunferência do texto que acontece em mim, mas sem atingir fatalmente seu núcleo, pois isso seria escrevê-lo e não é o que eu quero. aliás, é o que eu quero, mas não posso. se pudesse, estaria o fazendo neste exato momento.
na verdade ele estaria se fazendo. e eu humilde, resignada. instrumento da linguagem e da minha mais íntima humanidade. mas enquanto ele não quer vir - porque os textos que acontecem em mim têm a péssima mania de ter vontade, e de ser muito mais geniosos do que eu, teimosos, irrequietos - eu estarei aqui, fazendo outras coisas que não são uma tentativa de escrevê-lo. apenas de pressenti-lo.
porque pressentir o texto que acontece em mim é permitido. e não compromete seu amadurecimento. para proteger o texto que acontece em mim é que eu mesma me trouxe até a cadeira do quarto. porque estou inquieta e preciso falar. despretensiosa e irrelevante: falar.
até que de repente ele venha. e fale ele mesmo por mim.
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