- Mas você sabe que está errada, Sophia!
- Não, não me venha agora com moralidades, você sabe que não é hora para isto. Por tudo que fiz, sinto uma alegria horripilante, que a princípio veio me violentando, me tomando, me afundando cada vez mais no fundo daquele poço que, tanto eu quanto você, imaginávamos que fosse sem fim. A felicidade inesperada veio e acendeu a luz. Não era um túnel, era um poço, no fundo dos poços, sabíamos: não há luz. Mas há, estou aqui para te contar isto: há uma luz no fim do poço. E pouco a pouco essa luz foi me mostrando que a água que eu imaginava suja, na verdade era tão cristalina quanto a água da fonte, porque era a própia água da fonte da vida. Resolvi então beber desta água que imaginava insalubre, mas que era o tempo todo assim, potável. Eu bebi do poço da felicidade impossível, da felicidade insuportável, que foi me transformando em possível e suportável. Passo a passo fui saciendo esta sede, e quem me bebia depois era a própria alegria imprópria, não aos poucos, mas aos golões, afobada, engasgada, embriagada. E toma, toma essa felicidade pra você, toma a felicidade que não é um poço escuro. E não espere que alguém venha confirmar que sim, você pode, porque agora é à tua própria lucidez enlouquecedora a que você deve se entregar, então se entregue, mergulha nesse poço, não se impeça nem se imponha, não se negue, toma a tua felicidade. Não espere que compreendam essa felicidade doida que a lucidez do fundo do poço iluminado te ensinou. Ninguém entende, sabe? você não entende, e eu não vou te cobrar que entenda, só não me venha agora com moralidades, porque essa luz ácida, forte-quase-morte, essa felicidade proibida me trouxe de volta a vida, primeiro me ofuscando a vista que quase, quase se perdeu e me fez perdida, mas escuta: me acostumei à luz. E esta luz, só eu vejo, essa luz que você chama de erro e que eu nomeio maior-acerto-da-minha-vida, essa luz que você chama de loucura e que eu ouso nomear de chama da única lucidez possível. Então não, entendeu? não! Mergulha nos teus poços e convive com teus escuros, com tuas sombras, com tuas águas geladas, com teu lodo, com a tua umidade. Tenha humildade para isto. Te desejo o fundo do poço que é teu fundo-mais-fundo, sofre tuas mágoas, bebe tuas podres águas, encara o cheiro fechado de tuas culpas, tuas solidões. Conhece antes cada uma delas e enlouqueça. COnvive com teus defeitos, com o efeito que a consciência da existência deles pode causar na tua vida, mas mergulha no fundo abismal do poço, afogue-se e tenha a experiência de quase-morte que eu tive. Então, só então, você será capaz de ver a luz, a luz de tua eletricidade, a tua lucidez, a tua resposta e a tua força de vida. Elas nunca vão estar na superfície, nunca vão estar na boca do poço, que é de onde você me olha e me julga imoral, mas eu estou no fundo, percorri o meu caminho, me atirei para dentro da boca, e estou aqui, no cu do poço, no sujo-imundo do poço, no asco no poço, estou aqui, no inaceitável do poço, no deplorável do poço, no eu posso do poço, entende? EU percorri o caminho da digestão e da indigestão, eu mulher-indigesta no fundo do poço, passei pela acidez do poço, estou no eu posso! no eu posso amoral do poço. Então não, não me venha com moralidades, não agora, não mais, não nunca, porque este papo não engulo mais.
Mas olha, cuidado com o poço, porque não são todos os que chegam ao eu posso do poço. As pessoas enlouquecem, as pessoas perdem o contato com a realidade se a luz se negar a vir, porque pode acontecer de ela não vir. Porque ela não vem, é você quem a cria, você a cria por necessidade, e primeiro acha que ela veio e foi um presente, e depois descobre que ela estava presente em você: você só não sabia onde é que estava o interruptor. O interruptor do escuro do poço. Mas se ela vem, se você a encontra, de repente tudo fica muito claro, mais claro do que aí em cima. E você pensa: como é possível? Todos ensinam que o fundo do poço é ruim, é desgosto, é desgaste. E como você foi obediente por toda a sua vida, como é de costume, você repete pra si mesmo: não se pode! E então você não chega ao eu posso do poço, ao eu posso amoral do poço. E você se vê no cu do poço, e acha que é tudo uma merda, que você é uma merda, que chegou ao fim-sem-fim do poço. Então não, se você tem medo, se não quer se arriscar, você não pode, não pode me dizer que estou errada, enquanto que eu, daqui do fundo do mundo do poço, te vejo de baixo mas estou acima, nem melhor, nem pior: apenas mais-fundo-mais-acima, não do bem e do mal, mas do teu bem e do teu mal. Porque eu, do fundo-mais-fundo de mim, descobri que eu posso. E eu posso.
No teu poço você pode, bem no fundo do teu poço, porque ali você cavou a mais linda das tuas grutas e fez o que poucos fariam: experimentou a vida.
ResponderEliminarTexto ótimo, falou da angústia de escolher os próprios caminhos e da responsabilidade de administrar essas escolhas. Falou também daqueles que se incomodam com isso, porque não possuem a coragem necessária para tal.