terça-feira, 15 de dezembro de 2009
Sophia sabe mentir.
Uma tristeza que não era sua havia tomado conta de Sophia. “Soul fear, sou fria, sou-quem?: Sophia.” Ela havia permitido que aquilo a invadisse, docemente invadisse. Mas o que era? Pegava emprestada uma dor sobre a qual não tinha nenhum direito e não se sentia sequer arrependida. Não precisaria dissimular. Porque Sophia sofria sim, de uma dor não entendida. Tinha que mentir? Mentiria, então. Pelo menos dessa forma todos legitimariam seu sentimento: acreditando na mentira que ela inventara para sobreviver um pouco. “Como é fácil e insuportável mentir, como sou graciosamente dissimulada, sou desprezível”. O para dentro de Sophia era ativo e perturbador, mas o para fora era um rosto imóvel como o de uma estátua. Encenar fazia parte da mentira, mas lhe era tão natural. Havia aprendido com a mãe. Porque a mãe aprendera com a avó, remontando segredos de seu sexo milenar. Mas não era uma mentira condenável, assim como a maioria das mentiras das mulheres. Era apenas uma metonímia. Uma dor Sophia tinha, só havia “mudado de lugar”. Mas essa dor real era escondida, porque Sophia sabia que jamais seria aceita e legitimada. Para consolar-se, tomava para si uma outra dor. Uma dor que nela não doía, mas seria normal e aceitável demais que doesse. Uma dor que Sophia sentiria se não tivesse ido tão a fundo na vida. Mas Sophia tinha ido. E as coisas da superfície não doíam mais. O que doía estava para dentro e para baixo, o que doía era e deveria ser tão escondido como o prazer feminino. O que doía era tão inalcançável para si mesma, que não se dava ao trabalho de tornar à mostra. Só se pode confiar nos outros quando se confia em si mesma. Por isso, Sophia mentia. E dizia com os olhos: ai! Só com os olhos:ai! E todos a olhavam e pensavam: ela tem uma dor, que corresponde a um acontecimento. Mas a dor que Sophia tinha não correspondia a um acontecimento passível de ser conhecido. Correspondia a uma outra dor, uma dor que era só sua e de mais ninguém. Uma dor que correspondia um acontecimento invisível e flutuante. Então mentia, para viver mentia. Porque também era preciso manter o contato com o mundo exterior. Sendo sincera? Como? Não podia. Mentia porque preservava sua sanidade e queria para si também as facilidades do mundo que a cercava. Não queria uma vida inteira para dentro, Sophia era contemporânea demais, o efêmero a fascinava. Por isso precisava, “Ridiculamente preciso mentir, porque o mundo é louco e não se aceita, então devo me fingir de normal para que eles continuem fingindo que são normais, e fazendo de conta que estão me aceitando! A sinceridade só é permitida aos selvagens, aos que não questionam nos outros um nível de naturalidade acima da média: porque se reconhecem naturais e submissos.” Com quem poderia ser sincera na vida? Consigo mesma era duramente honesta, ao menos até o ponto que se conhecia a si mesma. Mas quem mais agüentaria tamanha sinceridade? Todos tão fechados, ensimesmados, escravos das facilidades do cotidiano! Pensar que o outro tem verdades tão cruas é aceitar que de repente, existe uma verdade dentro de você, capaz de transformar o sorriso arreganhado e irônico da vida em uma boca aberta de espanto, medo e dor. Por respeito a todos e a si mesma, mentia. E nessa linha fina entre o que era real e o que inventava, ia vivendo. Enquanto soubesse diferenciar os dois lados, estava tudo bem. Continuaria fingindo uma dor que não era sua, pra fazer valer uma dor que estava exausta de sentir. Sozinha, assombrada, Sophia.
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"A sinceridade só é permitida aos selvagens."
ResponderEliminarserá que um dia ainda volto pra floresta?
voltar pra floresta me parece uma utopia. mas há uma saída: buscar outros selvagens escondidos e isolados no meio da selva de pedra.
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