sexta-feira, 18 de junho de 2010

A menina Sophia e a maçã

Mas era saborosa a maçã, suculenta, doce. E como se não bastasse, ela estava com a maldita fome das quatro da tarde. Como estavam todos ocupados demais com as próprias vidas- a mãe com as compras, o pai com o emprego e o irmão com o cursinho -, podia se entregar indiscretamente ao seu estado mais humano e secreto, distraída, viva, vendo sem ver.
Mais uma mordida, e mais outra cravando primeiro a casca, depois a poupa: a maçã ia perdendo sua forma definida e vermelha para, aos poucos, se tornar cada vez menos uma maçã e cada vez mais naquela maçã. E era boa, e era doce, e era cheia de água e sabor aquela maçã. E era mais dela do que qualquer outra coisa.
A tudo a menina olhava com extremo descompromisso: podia ver os ponteiros do relógio na parede, sem pensar sobre as horas. Podia ver a palavra “estupro” no jornal, sem que imagens corressem a galope em sua mente de menina. Nada, nada, sem pensar. Assim: uma desconexão plena com o que era de fora, e uma intensa conexão com o que era dentro. E, se realmente tivesse olhado para o relógio, de pouco importava e de nada adiantava: ela nunca se lembraria daquela cena, só se lembraria do sabor da maçã. Nunca havia se dado conta, e talvez nunca se daria, de que essa liberdade tão rara era a sua maneira mais essencial de existir. Comendo a maçã, cumpria o máximo de sua existência. A nada resistia, nem era preciso resistir: a mente vazia de pensamentos, significados insignificantes, apenas o sabor da leve e saborosa maçã.
Se iria um dia pintar as unhas de vermelho e atravessar noites e dias dançando em êxtase, era o que menos importava. E ela nunca imaginaria tal possibilidade. O que a prendia, sem que pudesse se dar conta disso, era seu estar no mundo, às quatro horas de uma tarde larga, sentindo o gosto e a textura da maçã. Que faria depois que a maçã acabasse? Não sabia. O que sabia? Que era boa a maçã. Mas não, não era com o pensamento que sabia, tal qual como fora e seria toda sua vida de mulher: dada a saber das coisas por outros meios. Se um dia pintaria seus cabelos de amarelo-ouro e os faria balançar para lá e para cá com seu andar sedoso pelas ruas em plena madrugada, de nada adiantava saber. Ainda era a virgem no meio de uma tarde flutuante. E, como não seria capaz de se dar conta de sua habitual e em breve perdida entrega, pouco importava se sentiria saudades do que havia passado sem saber exatamente saudades de quê – e isso por não ter consciência dessa liberdade com que intimamente comia a maçã.
De que adiantaria saber sobre o peso que a esperava no futuro, desde a noite em que fora concebida sem amor pelos pais? – mais uma mulher diante do mundo louco. Saber, não sabia. Mas pressentia em raros momentos de aguda lucidez que não seria dócil a travessia. E isto era um susto, um surto, um soluço repentino e passageiro no meio de seus dias iguais. E, como ninguém tem o costume guardar na memória um soluço passageiro, também a menina se esquecia dele. Porque havia uma fresca manhã de sono em sua vida, e havia uma fresca maçã deliciosa em suas delicadas mãos. Por que então lembrar-se do soluço irrefletido, se podia exercer a virgindade de uma menina que ainda não se enxergava como a medida de tudo o que existe? Era a virgem, a mais virgem entre as virgens, e tão virgem quanto qualquer outro ser humano, como qualquer dama da noite: sempre virgens do tempo, sendo estupradas a cada momento pelo furo do futuro, o furo que suga pra dentro cada ser, e que e que o joga para dentro do furo seguinte: o furo do segundo, um estupro, e mais outro, e mais outro. Virgem como qualquer ser humano diante do tempo, sendo violentado a cada próximo e a cada distante segundo.
Assim como a maçã jamais imaginaria ser arrancada do pé e ser violentada pela boca salivante de uma menina virgem, a menina virgem jamais adivinharia que seria arrancada de sua inocência pela vida incerta. E ali estavam as duas: a maçã sendo corrompida pela boca da pureza. E a boca da pureza sendo deglutida pela roda dentada da vida.

5 comentários:

  1. "dada a saber das coisas por outros meios"

    é...

    (eu quero escrever uma carta pra vc. mas ainda adio...)

    ResponderEliminar
  2. Você tem razão... nunca saberemos quem será a vítima de nossa boca salivante, e nunca saberemos quem será nossa próxima dentada. Mas cabe a nós ficarmos nos questionando sobre? Acho que cada um tem sua própria roda dentada(no meu caso é o tempo - o maior dos professores, porém, que mata todos os seus alunos).

    E a maçã, fruta do pecado, o primeiro e definitivo, o que expulsou o mundo do paraíso... adorei!

    Bejo!

    ResponderEliminar
  3. Olá!

    Que curioso, embora a minha língua, muitas vezes, fique dentro da boca, o meu nariz não; de maneira que, passeando a esmo, vim parar aqui. Adorei!Incrível o texto; transformaste uma ideia, um sentimento, numa história que vingou num lindo texto literário. Parabéns, querida moça.

    Um abraço,

    ResponderEliminar
  4. 'Ainda era a virgem no meio de uma tarde flutuante.'

    Existem pessoas. existem pessoas numa tarde flutuante. E existem pessoas flutuantes. Você é uma destas pessoas flutuantes. Digo você que escreve. Seu texto da vontade de morder maçã. Seu texto da vontade de virar maçã, com toda a sua vermelhisse.

    Vim multiplicar extasia. =)
    Obrigada pela visita.

    Beijos, Rafa.

    ResponderEliminar
  5. Achei incrível a maneira como colocou para fora essa idéia, esse sentimento sobre a transformação pela vida. Muito mesmo.
    :)

    ResponderEliminar

Que tal continuar o poema nos comentários? Co-criemos.