terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Carta de Sophia a um amor que não foi.

O que quer uma mulher mais do que um amor inteiro? Meu medo é deixar a vida sem encontrar jamais esta resposta, mas aqui estou – eis-me! – cá estou eu exposta, virando meus avessos e falando com você a respeito dos meus antiqüíssimos antiquados fracassos secretos, tão secretos que nem mesmo eu fui capaz de desvendá-los.


Uma coisa que aprendi na vida é a ser doce, mas possuí instruções ainda melhores para ser amarga e insensível – habilidade da qual me orgulho tanto quanto deus, se existisse, se orgulharia dos pecados de seus amados filhos. Mas o que fazer quando o pai errou? Nosso pai que está no mitológico longínquo céu errou seu erro primeiro ao fazer um ser que erra desde sua primeira infância. Tal é o destino dos homens: errar. Porque tal é o destino de deus.

Ninguém escolhe suas próprias fraquezas, nasce-se numa família onde certas fraquezas são recorrentes há gerações, e então não há muito como ou para onde correr se não houver por dentro uma força extraordinária que te diz: não é teu destino o destino deles, ou pelo menos: não é com o mesmo erro que tu deves errar. Comigo foi assim. Não aceitei o erro que meu sobrenome me impôs, toda a minha vida tem sido construída para fugir e remediar os sofrimentos daqueles que de mim sairão, para que eles possam escolher erros diferentes dos meus ou simplesmente seguir os meus – mas aí eu já fui muito longe e não cabe a mim adivinhar qual será a escolha daqueles que perpetuarão o sobrenome que trago e que darei a eles também, porque aprendi a sentir orgulho dos fracassos da toda uma família pois a tragédia de cada um é de certo modo bonita e magnânima, o fracasso de cada um esconde pequenas vitórias diárias e é nelas onde me agarro, e elas validam a vida e tornam a felicidade, as pequenas felicidades, legítimas e boas.

O que é de real importância é eu dizer-te, homem, menino, pequeno grandessíssimo homem que é o mais homem e também o meu garotíssimo menino que desejava aninhar-se em mim como uma criança assustada, o essencial é que eu te diga, que eu te explique a minha própria tragédia, a tragédia que inventei para que pudesse viver as pequenas vitórias. O essencial é dizer-te que não fugirei de minhas responsabilidades e direi: fui e sou cruel, mas me lembro de você com a mesma suavidade de sempre e gostaria muito de ter cedido ao teu instinto de pai, protetor, ao teu destino de homem. Eu deveria ter cedido, e realmente nasci para ceder: meu instinto de fêmea diz: aceita e ama; minha cabeça de mulher feita diz: rejeita e segue só o teu caminho, que não há em quem confiar neste mundo.

Olha só, como sou trágica, nem eu mesma acredito na minha enorme tragédia. Neste momento eu digo a grande, a enorme, talvez a minha única boa verdade, mas quando eu digo algo que toca intimamente na realidade, na minha realidade, tudo me parece uma grande fantasia e eu pareço a mim mesma uma falsária, imitadora patética de mim mesma, pareço uma inventa vidas inventando uma história para que sintam pena da minha existência que é uma dose diária de fracassos e pequeniníssimas vitórias – que servem como a esperança que acaba por prolongar o fracasso maior.

Precisava e preciso, homem, de alguém que me fizesse acreditar em minha própria história, alguém que me dissesse: tens medo e precisas tanto de mim – ainda que eu gritasse esperneasse ainda que minhas veias saltassem ao pescoço violento ainda que meus olhos parecessem pequenos e feridos pela vaidade mais íntima, ainda que, sempre e sempre ainda que. Precisava e preciso de alguém que entendesse mais de mim do que eu mesma e que assim me resgatasse do terror psicológico íntimo em que me meti tão sem querer, meu deus, tão sem querer.

Eu só queria ser só, afinal, eu já era mesmo. Eu só queria ser eu – quando é que eu fui? E chegarei um dia a ser tal ser, eu –eu! – inteira, redonda, com cheiro de coisa azul. Eu só queria ser só, não depender, pensava (ou sentia?) enquanto meus olhos adolescentes cerravam firmes enquanto minhas costas empurravam a porta para evitar a forçosa entrada, eu aprenderia a ser só, os olhos vermelhos e ardidos como uma quentura localizada, enquanto as mãos agarravam firmemente a maçaneta para preservar a solidão e o próprio corpo depois de uma luta física e psicológica dentro do meu próprio lar – você sabe o gosto que tem essa luta, essa luta diária, essa luta sem uma anestesia sequer? A luta para mim tinha um gosto de coisa parada na garganta, coisa que nunca desceu para o estômago, tinha gosto de veneno e era desse veneno que eu precisava e cada vez mais tinha, o que me fazia seguir adiante pedindo vida longa e justiça a um deus que sei lá o quê, morto?

Mas isso, homem, essa coisa também não importa muito, essa coisa foi apenas a última e a primeira tem sempre um peso maior. A última coisa arrebenta e faz transbordar, a última gota. Mas a primeira, a segunda. a terceira, são essas que começam a encher um copo vazio, foram as coisas que aconteceram primeiro que encheram meu corpo vazio do saco cheio de se viver, que me instruíram e eu aprendi muito bem, obrigada, pois que sou ótima aluna – aprendi a ser doce e amarga na mesma medida, mas pior: aprendi a não precisar definitivamente de ninguém – aprendi a acreditar nisso, acima de tudo.

Bem sabes dos fatos da minha vida, contei-te quase- quase- todos, mas de que importam os fatos? Fatos acontecem com todos, o que importa é aquilo que fazemos com os fatos, o que sentimos com os fatos, e, principalmente, o descontrole com que cada um dos fatos lentamente nos vai transformando naquilo que enfim um dia somos transformados – estou eu já transformada ou teria ainda uma salvação? não sei, não mesmo, mas talvez se eu soubesse definitivamente que não tenho salvação, talvez não estivesse aqui, escrevendo essas coisas confusas, talvez não tivesse entregue a esse torpor que sinto quando escrevo, esse torpor chama-se esperança? Por que é que só faço perguntas e não trago respostas. Você tem respostas? Pois então guarde-as se as tiverdes, quero apenas que ouças, porque em verdade estas linhas não mudam nada, nada, nada, e tuas respostas não mudarão nada, nada, nada. Minhas vozes são inúmeras e eu as obedeço, assim eu escrevo das mais variadas formas, eu digo tu e eu digo você pois sou mais do que só eu, simplesmente me obedeço e aconteço.

Voltemos.

Ah menino, ah homem, tu falhaste? Não, eu te digo: eu falhei. Aprendi humildemente a ter culpa, e não aprendi jamais a sentir uma culpa injusta, pelo que imagino de mim mesma, portanto, acredite: fui eu quem falhou, me deixa ficar com essa culpa. Mas não falhei por ter sido você, eu falharia com qualquer bom homem, com qualquer um que tivesse o instinto de me proteger, de dar a mim o que uma mulher precisa – mesmo que eu não seja só uma mulher, mesmo que eu seja uma mulher, filha de todas as mulheres do mundo, herdeira da primeira mulher, eu sou mais que uma mulher e menos, muito menos do que uma mulher, eu sou eu – que isto significa: eu?

De repente você é grande, de repente você é pequeno, e torna a ser grande, e ainda é pequeno: medindo-te a partir de mim tu nunca terás o mesmo tamanho, porque eu sou grande e sou miserável, dá-me um olho estável, um olho que olha sempre do mesmo modo para o mundo, dá-me... tola, ninguém me pode dar nada, quanto menos um olho, se nem mesmo eu tenho capacidade para dar-me qualquer coisa. Estou dando voltas? Volta e meia, então, direi-te, meu pequenino, meu homem grande, direi-te para que te aflijas mas para que no final das contas tu coloques tua cabeça pesada dos problemas diários no travesseiro- aquele travesseiro tão querido – e me digas telepaticamente: fraca, fraca, fraca. E me culpe, poupando-se de todo o mal, todo todo o mal, pois ele cabe a mim, que fui realmente fraca e não me opus a mim mesma. Mas homem, pequenino meu-não-meu homem, me culpe mas me perdoa também, que eu não me conheço assim tão bem, pois que me invento, me reinvento, me desinvento, e no fim fico assim estúpida e inventada a procurar uma identidade: eu?

Perdoa o imperdoável em mim, a recusa que eu mesma fiz à minha felicidade porque para ser feliz eu precisaria abdicar de toda uma vida que já vivi, só é feliz quem com muita virtude e simplicidade se esquece. E eu me esqueço, homem, de tantas coisas, mas não tenho em mim tal capacidade para aquelas primeiras coisas – das quais nem me lembro direito, então como se esquecer do que mal se lembra? Queria incomensuravelmente a tua proteção, homem, a mulher selvagem em mim é que deseja essa proteção, que a aceitaria, mas não sabes ainda? Que a mulher humana em mim aprendeu a rejeitar as proteções masculinas porque o homem de quem eu mais esperava essa proteção foi o que mais me feriu? Não sorria com pena agora, te odeio quando você sorri com pena de mim, te odeio quando você quer abraçar minha fragilidade e colar em mim para que eu sinta a sua força e faça dela a minha força também, me deixa só, eu e minha ferida aberta, exposta, vermelha, deixa a minha ferida ser rubra, deixa, deixa! Perdoa um erro que a priori não foi meu, um erro que antecedeu minha existência, o erro que está no meu sobrenome e que eu desviei para que não fosse o mesmo que há gerações vinha sendo, mas que mesmo desviado não deixou de ser erro, passou apenas a ser outro erro. Perdoa minha rejeição de bicho que aprendeu a ser gente e desaprendeu a permitir o fruir da vida – minha tragédia exaustiva que cumpro dia após dia.

Quem pois nessa vida é culpável, se nenhum dos seres humanos deste mundo pode fugir ao próprio destino fatal que é: errar. É tão fácil culpar pessoas e sobrenomes, não? Pois o meu sobrenome não tem culpa nenhuma, afinal, antes deles já havia outros erros e antes desses outros erros aqueles outros e outros e outros. Olho para trás e vejo erros, os erros que meu sobrenome carrega, e vejo como os erros são maiores que as pessoas que os carrega, os erros infugíveis, e vejo cada pessoa que passa na rua: todos com o peso de um grande erro que se seguirá por todos os dias que viverem suas medíocres e inigualáveis vidas. Estamos todos na mesma condição: a humana. A condição que conhece a palavra erro e por isso mesmo erra – porque bicho não erra, bicho é perfeito, bicho é. Quem, então, quem tem culpa, a culpa culpável, dolosa? Não há. Viu só, como mesma amarga possuo docilidade? Sei que tenho culpa, mas ainda assim não me culpo, sei quem é culpado mas sei que ninguém tem realmente culpa. Sinto culpa porque do sentir não se foge jamais, assim como do saber não se foge: sabe-se uma vez, sabe-se de uma vez por todas, e os saberes se acumulam uns sobre os outros e eu sei que sou apenas uma menina cantarolando a vida mas sinto que sou uma mulher com o dom da força, eu sei que sou um ser confuso mas sinto que tenho todo o controle nas minhas mãos. E tudo de repente muda e eu seu que sou uma mulher com o dom da força mas me sinto uma menina cantarolando a vida, e eu sei que tenho o controle nas minhas mãos mas sinto que estou confusa demais, eu sempre me opondo a mim mesma. Eu sei que te amo mas sinto que não posso, eu sei que não posso mas sinto que te amo, e de trás pra frente, e de novo, tudo mudando, mudando, me invertendo, me inventando. O melhor a fazer é poupar-te da destruição que sou eu – e não se oponha a isso pois já disse que essas palavras nada mudariam, apenas leia, apenas ouça minha voz muda e minha entonação, só isso, só isso, obedeça, obedeça. Um dia quem sabe me curo? Minha esperança tem a forma de uma letra, de uma palavra, de um texto mal acabado, mas ainda assim é alguma esperança.

Veja bem, isto é não é um grito, não é nada na verdade. Não te peço nem despeço nada, quero mesmo é dizer-te tudo o que já te disse mas com outras palavras, outras que firam mais as tuas fibras e que acalentem também as suas e as minhas dores. Quero dizer que sou ainda tão jovem e não sei o que faço de mim, quem sabe? Que eu gostaria de saborear o amor comum e o incomum que existe dentro da normalidade, e desejar o amor inteiro porque posso tê-lo e ele tem um nome: o teu. Mas não posso tê-lo porque tenho um nome: o meu.

Então perdoa, homem, perdoa o imperdoável em mim, perdoa o meu sobrenome e o que eu fiz para desviar-me dele, pois o que me desviou dele me desviou de um erro comum aos meus ancestrais mas desviaram-me também de você. Quem sabe, homem, esse não é um destino? Ser eu. Ser eu mesma, eu, eu, eu, eu, com um erro próprio. Quem sabe, homem, um dia não me acostumo a ser múltipla e dentro dessa aparente unidade corporal, quem sabe com o tempo eu não me aceite um pouco mais, e aceite assim a vida e aceite que sou um bicho selvagem e sozinho que precisa de proteção também. Enquanto isso não acontece, meu grande, meu pequeno, deixa que eu vou tentando me salvar de mim mesma, deixa eu ser bicho gente e não se magoe comigo, que eu lembro de você e do seu gosto mas isso ainda não pode passar de uma boa lembrança. Eu ainda tenho aqueles sonhos, mas eles me são tão insuportáveis por estarem longe.

Então homem, se puderes, esquece-te de mim, dos meus beijos, dos meus acessos de raiva um tanto quanto camuflados, esquece da minha voz, da minha ausência, da minha crueldade pequena e irremediável... esquece que me conheceu, pois sou ainda tão menina, tão mulher que nunca está pronta, esquece e vive tua vida. Talvez você conheça uma mulher que jamais tenha se desviado do seu destino primeiro de mulher que carrega um sobrenome, e talvez eu ter desviado do meu tenha te deixado ainda mais perto dessa outra, quem sabe? Mas pega a tua vida pra você, sem hesitar, sem olhar para trás, sinta os beijos, goze os gozos, beije calorosamente as nucas pois pode ser que nunca mais venhamos a nos encontrar, então agarre seu presente sem pensar no futuro ou no passado, que este é morto e aquele tão incerto. Enquanto isso também eu viverei. Se nos encontrarmos será lindíssimo, mas se não nos encontrarmos... bem, será lindíssimo também, só que de outra forma. É o que espero. Viva.

4 comentários:

  1. "Não se deixe enganar em sua solidão só por que há algo no senhor que deseja sair dela. Justamente esse desejo o ajudará, caso o senhor o utilize com calma e ponderação, como um instrumento para estender sua solidão por um território mais vasto. As pessoas (com auxílio de convenções) resolveram tudo da maneira mais fácil e pelo lado mais fácil da facilidade; contudo é evidente que precisamos nos aferrar ao que é difícil; tudo o que vive se aferra ao difícil, tudo na natureza cresce e se defende a seu modo e se constitui em algo próprio a partir de si, procurando existir a qualquer preço e contra toda resistência. Sabemos muito pouco, mas que temos de nos aferrar ao difícil é uma certeza que não nos abandonará. É bom ser solitário, pois a solidão é difícil; o fato de uma coisa ser difícil tem de ser mais um motivo para fazê-la.

    Amar também é bom: pois o amor é difícil. Ter amor, de uma pessoa por outra, talvez seja a coisa mais difícil que nos foi dada, a mais extrema, a derradeira prova e provação, o trabalho para o qual qualquer outro trabalho é apenas uma preparação. Por isso as pessoas jovens, iniciantes em tudo, ainda não podem amar: precisam aprender o amor. Com todo o seu ser, com todas as forças reunidas em seu coração solitário, receoso e acelerado, os jovens precisam aprender a amar. Mas o tempo de aprendizado é sempre um longo período de exclusão, de modo que o amor é por muito tempo, ao longo da vida, solidão, isolamento intenso e profundo para quem ama. A princípio o amor não é nada do que se chama ser absorvido, entregar-se e se unir com outra pessoa. (Pois o que seria uma união do que é esclarecido, do inacabado, do desordenado?) O amor constitui uma oportunidade sublime para o indivíduo amadurecer, tornar-se algo, tornar-se um mundo, tornar-se um mundo para si mesmo por causa de uma outra pessoa; é uma grande exigência para o indivíduo, uma exigência irrestrita, algo que o destaca e o convoca para longe. Apenas neste sentido, como tarefa de trabalhar em si mesmos ("escutar e bater dia e noite"), as pessoas jovens deveriam fazer uso do amor que lhes é dado. A absorção e a entrega e todo tipo de comunhão não para eles (que ainda precisam economizar e acumular por muito tempo); a comunhão é o passo final, talvez uma meta para a qual a vida humana quase não seja o bastante."

    Rilke em "Cartas a um Jovem Poeta"

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  2. liberta está do destino da mulher primeira, porque a mulher primeira não existe. ela vem depois - ela se faz e é feita: efeito do sobrenome, do que se convenciona homem, do que se convenciona "ela". mas há que se pedir perdão? por ser aquilo que o destino inventado não queria? pois se o destino anterior foi inventado - demasiado humano - que seja humano seu o novo destino. múltiplos. não conheço a mulher selvagem. acho que ninguém de nós chegou a conhecer. conheço a mulher do sobrenome: e aquela que o rompe. romper é difícil. mas sem culpa. o amor nasce em outros espaços, em outros momentos. ;)

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  3. Amor tu falas com a lingua dos anjos, deixe sentir, sua linguada me encanta! beijos

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  4. ai espelhinho, me deu uma dor de ler isso tudo.é a mesma,incrivelmente na mesma intensidade, a minha mesma dor.que desvio é esse nosso que parece um fio tecendo invisivelmente uma linha infinita?tenho medo de não saber sair desse emaranhado.

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