sem direito
à ingenuidade
anda a menina
pela cidade
vestida para o calor
a pouca roupa
não é pro senhor
sem direito
à ingenuidade
anda a menina
pela cidade
vestida para o calor
a pouca roupa
não é pro senhor
não consigo mais
lerminski
confesso
inconformada
de fato
se foi
a literatura
herdada
dos homens
não admiro
mais nada
amadeirado ele
doce ela
a semiótica
dos cheiros
revela
o que há
por trás das eras
das belas
e das feras
o rei já era?
quem me dera
o império se diluir
em quimera
da terra à
estratosfera
porém o império impera
enquanto isso
de ninguém
além de sua
ser rainha
a mulher
des
espera
Para os olhos, a pressa, fast forward tentando antecipar futuros. Para os ouvidos, a possibilidade do mute. Para a língua, venenos enlatados. Para o nariz, aromas fabricados. Para a pele, plástica. À procura do cume perdemos a bela flor amarela no meio do caminho. Tendo chegado ao mais alto, acusamos a outra de não nos amar, e o eco nos acusa de volta, porque a pressa de chegar no topo nos fez enxergar outras velocidades como atraso, e não paramos para nos darmos conta de que a nossa existência não é a única que está em jogo. Os sentidos estão cada vez mais famintos, pois tentamos matar a fome de sermos amadas desdenhando do amor. A pressa dos olhos que não se demoram parados dentro de outros olhos. O isolamento acústico à qualquer dor que não seja nossa. O sabor artificial. O aroma de ausência. O tato enojado. Rejeitamos com força a realidade do corpo. Rejeitamos o olhar sincero da outra pois a verdade dele machucaria a vida de mentira que levamos. A dor da outra, não ouvimos, para não termos de adimitir que sentimos dor também. E por olharmos sem vermos e por ouvirmos sem escutarmos, nos empanturramos de sal e açúcar pois consideramos a vida insossa. Reprimimos nossos cheiros pois eles são a mais pura expressão das nossas verdades animais. Não aproveitamos toda a superfície da pele porque procuramos o gozo rápido. Vivemos na bolha dos sentidos. Gritamos, de dentro das nossas bolhas, todas as nossas verdades que chamam de loucuras, e achamos que a nossa salvação está em quem grita o mesmo grito que gritamos. Mas não há salvação que não venha de dentro. Nós procuramos por nós mesmas em outros corpos. Procuramos pelo amor que não conseguimos nos dar. O amor que tentamos sentir distrai todos os nossos sentidos e acabamos exaustas e perdidas na falta de sentido de uma vida cuja felicidade é medida na base das sensações. Que cesse a festa das coisas graúdas e comece a celebração das miudezas.
mãe picotada na tábua
com alma de cebola
camada por camada
ela foi descascada
sobrou apenas o núcleo
que o mundo chama de
essência maternal
lágrimas secam
com a louça
louca, dizem
enquanto o filho puxa
suas calças
pedindo colo
ela para tudo
deita a faca na pia
sorri olhando para baixo
pega a cria
brinca
fala língua inventada
sílabas desconexas:
empatia
de repente não sabe
quem salva quem
dois seres humanos
sentam à mesa
dizem hummm pra comida
afetados de amor e vida
o pequeno adormece
a mulher desperta
pensa, escreve, registra
desvia do olhar alheio
respira fundo com ânsia
nauseada pela indiferença
o bebê está saciado
dorme tranquilo o filho
mas a fome da mulher
é maior que o estômago
maior que seu corpo nervoso
é a fome da fome da fome
insaciável
adiada
pela maternidade
é o fluido da cebola
que arranca as lágrimas
e faz deslizar a caneta pelo papel
e o papel de mãe
não é seu núcleo
a tinta da caneta é que é
abro mão da identidade
troco as palavras
que (não) me definem
pelos meus pés
coxas ventre
fêmur útero
a pós-modernidade
diz que quem quiser
pode se autodeclarar
mulher
que encham a boca
para proferir
o substantivo
o sujeito
quem se importa?
o verbo é meu
a vida que me vive
não pode ser
enclausurada
pelos signos
não é fluida
nem volátil
líquido é o meu sangue
material é a minha opressão
mimese impossível
a da ação
a poesia velha
me sufoca
contra a parede
me engessa
em absurdas
e mudas
feminilidades
minha vulva se revolta
pelos caralhos passados
pretérito imperfeito
que só é perfeito
no presente
porque o filho existe
meus seios despencaram
alguns milímetros
depois da amamentação
estão mais belos
agora molengas
do que quando eu tinha
quinze anos
histérica?
histérico era freud
que sexualizou tudo
até mesmo crianças
pedófilo encubado
talvez
escondido atrás
do charuto
cínico era lacan
quando tagarelava
entre outras bobagens
"a mulher não existe"
(1/4 da droga que ele tomou
por favor?)
a psicanálise velha me sufoca
me prende dentro de um corpo
que me é todos os dias negado:
pelos?
estrias?
rugas?
cheiros naturais?
móveis empoeirados?
louça na pia?
amar outra mulher?
coisas de homem
proibidas pra quem
nasceu com útero
tem que parecer
pré-púbere
tem que agradar
exigências masculinas
tem que
tem que
tem que
foda-se
risco
com minha carne
o hoje histórico
cuspo no mofo
dos livros
que falam de mim
mas não me representam
gargalho dos gênios
emburrecidos
pelo pedaço de carne
inútil e violento
que carregam
no meio das pernas
vomito a alma para fora
e por alguns instantes
exorcizo a literatura
herdada
dispenso heranças
prefiro a pobreza
de pensar
por mim mesma
o tempo do avesso
os ponteiros girando
à esquerda:
do fim pro começo
voltar ao ponto
antes da perda
espermas de volta
ao pênis
até o meu corpo
virgem
merda
de vertigem